A sujeira dos dias
“Tenho fé em Deus, com a ajuda de Deus, eles nunca vão tirar a gente deste lixo. Eles dizem que sim, que vão. Mas não acredito. Eles nunca vão conseguir tirar a gente deste Paraíso”.
Marcelino Freire
Do lixão se via o mundo. O mundo todo e uma cidade inteira se vê dentro do lixão. Há umas montanhas de restos de materiais de construção, de sucatas, de sobras alimentícias e fraldas descartáveis. Tudo isso igual a uma cidade com suas casas carros supermercados e creches amontoados.
Umas cidades têm aterro sanitário, área de compostagem, esses nomes aí. Aqui não. Temos um belo monturo. Tão belo que quando a noite traz a lua, não sabemos a quem se deve contemplar primeiro. Uns montes de bagulhos e pequenos seres rastejantes mantém vivo o lugar enquanto a cidade dorme.
Genésio, Ronaldo, Marli e companhia já pedalam atravessando os campos em direção ao lugar. A névoa compacta dessa manhã significa que terão de esperar um bocado até a hora de colocarem suas luvas de couro e seus chapéus para trabalhar, ninguém queria se enlamear tão cedo. Depois de fazerem uma fogueira de gravetos para esquentar as mãos começam a amarrar uns sacos de lona nas cinturas para começar a atividade. Assim que encimam um monte de entulhos, Ronaldo dá um sinal:
-Óia lá pessoal, carro de bacana qué dizê o que heim??
-Carniça no nosso local de trabalho...
A Ford F-250 deslizava macio e inaudível pela estrada de chão batido. Na cabine arejada, Zé Henrique acelerava com cautela procurando um canto onde descarregar a sujeira do patrão. Genésio e Ronaldo largam suas sacolas e correm praguejando.
-Filho da puta, cachorro morto aqui não!
-Anota a placa, anota a placa, Ronaldo!
Quando Zé Henrique encontrou um espaço próximo à cerca já os dois homens estavam bem pertos e pegavam em paus e pedras. Arremessavam por sobre a cerca. Zé Henrique acelerou levantando uma nuvem de poeira. As mulheres, do alto, gritavam:
-Vem bora, homens!
-Ele vai desovar perto da cidade.
Ronaldo e Genésio voltaram cabisbaixos sabendo que Zé Henrique despacharia o que quer que fosse próximo a suas casas. Chegaram suados e arfando, pegaram seus sacolões e se aproximaram das mulheres. Uma delas disse:
-A gente já denunciou essa placa.
-E placa lá liga pra denúncia?
Continuaram a catar, calados, o reciclável do meio do lixo. Vez por outra pegavam em algo mole, podre e fedorento, então deixavam de lado como quem esquece um pesadelo. Várias vezes se ajoelhavam entre os detritos para melhor vasculhar, puxar, arrancar do meio de tudo um grande pedaço de nada.
-Cê sabe onde mora o bacana, Genésio?
-Só sei onde mora o puxa-saco.
Naquela noite enquanto Zé Henrique e sua mulher assistiam deitados ao programa do Ratinho, ouviram um barulho abafado no quintal. Ela encarou o marido e ele saiu reclamando da cama. Olhou pela janela e viu o saco plástico. Adivinhou pelo cheiro o que era.
-O que foi meu bem?
-Nada não, amor!
Pela manhã o lixão reverberava sob o sol. Urubus saltitantes e cães sem dono remexiam em montes de penas e ossos do que devia ter sido no passado patos e galinhas. Um grupo de homens e mulheres estavam em cima de uma pilha de entulhos. Abaixavam suas costas e vasculhavam entre os detritos à procura da subsistência.
-Nós demos uma lição naquele cara!
-Só porque tem um emprego se acha melhor que nós.
Enquanto isso, na cidade, Zé Henrique cavava um buraco no próprio quintal ouvindo sua mulher reclamar. Assim que empurrou o pacote para a cova lembrou-se que já estava atrasado para o trabalho. De acordo com o patrão era hoje o dia de escolher um novo filhote.