Em busca daquilo que não se tem

Vejo vapor escapar da xícara quente de café e retorcer-se em ângulos tortuosos decididos autoritariamente pelo ar, maestro absoluto que circulava na apertada cozinha. Água ferve, mosquito passa, o crack do pão crocante invade os ouvidos e um olhar perdido encara o líquido escuro a repousar na pequena peça barata de porcelana falsa. De súbito, presto atenção em algo particular no café, dois pontos ainda mais escuros que sobressaem na superfície trêmula como dois olhos frios de monstro cruel a me espreitar e devora: ah, que tolice, são só meus olhos refletidos de forma deformada. Que frustrante! Mesmo quando vistos no reflexo de café fervente, continuam desumanamente frios a cortar-me a alma em pedaços tão pequenos que sem solução perdem-se uns dos outros e dissolvem-se na melancolia pairando sobre mim de forma tão pesada que dói-me o peito e a cabeça.

Cansado de torturar-me com a visão ridícula daquela criatura miserável, jogo o resto na pia e volto pro quarto, já sinto aperto na garganta. Dizem que o quarto é o refúgio de qualquer pessoa e de fato talvez seja, mas pra mim sempre foi um recinto ambíguo, pois por mais que lá eu possa me entregar ao que realmente sinto e se necessário derrubar-me em lágrimas que rolam sem fim, também é onde mais estou vulnerável justamente por entregar-me a mim sem firmar o mesmo compromisso com o mundo, com os outros ou com a Vida, eu só entrego o que tenho e não me preocupo com ressalvas e planos, somente sinto e me permito existir numa irresponsabilidade simplória, talvez até suicida.

Olho para a réplica barata da Torre Eiffel em minha cômoda e sorrio-me com tal mediocridade que mesmo sendo tão ingênua, é meu único traço de individualidade naquele lugar. A cama é comum, o guarda-roupa é comum, o criado-mudo é comum, o tapete marrom é comum, tudo é comum demais. Qualquer rapaz angustiado de qualquer parte do mundo poderia ser o verdadeiro dono daquele quarto, mas sobre a cômoda, coberta por uma fina camada de poeira, há a réplica pequena e opaca da Torre Eiffel e isso fazia com que aquele quarto não fosse de qualquer um de qualquer parte de qualquer idade de qualquer ideal. É meu, sou eu. Abro a janela, ajeito alguns móveis, até organiza folhas da minha época de Ensino Médio e por mais que eu ajuste aquele ambiente em direções imaginárias, percebo que o que está fora de sintonia ali não é um objeto e tampouco uma lembrança, mas sim eu mesmo. Ando desajeitado pelo espaço apertado que poderia muito bem ser a caixa de sapatos de um gigante – um gigante dos bons, claro – e por mais que eu tente velejar por meus pensamentos não consigo encontrar algo que indique o que me inquieta. Ah, é melhor sair e tomar ar fresco, espairecer, andar, ver gente.

Afinal, por que tudo é como é? Qual o sentido de nos dizer nos livros de Filosofia, Ciência e Sociologia que o ser humano é fundamentalmente um ser racional e especial e social se no fundo as pessoas são, na verdade, ou racionais ou especiais ou sociais e jamais tudo isso e se são tudo isso, correm e encontram outras pessoas que também são tudo e jamais ensinam a nós, criaturas monocromáticas e monoabençoadas a deixarmos de sermos parciais para também atingirmos completude? Imagino que no fundo, quem tudo tem de especial, não quer arriscar se rebaixar e compartilhar plenitude com quem é limitado para depois descobrir que também tornou-se limitado, enquanto aquele que é limitado simplesmente não quer se arriscar a sonhar e se decepcionar uma vez mais: quando se aceita o seu destino, é melhor permanecer na ignorância de não conhecer o que é melhor, do que experimentar uma vez e pelo resto da vida ficar a desejar. Quando enfim volto a mim mesmo, estou andando por puro automatismo numa calçada apertada de outra rua estreita dessa cidadezinha mineira outrora simpática, agora decadente como eu.

Assim como faço em Viçosa, encaro pessoas aleatórias na rua buscando despertar nelas qualquer tipo de ação que,se refletida em seus olhos, espero causar em mim alguma reação que finalmente acenda-me de novo o fogo da alma e enfim prove que as estúpidas leis de Newton não passam de bobagem científica que se aprendemos na escola é para anos depois esquecer e dizer nas rodas de amigos quão inteligentes, educados, grandes e cultos somos por um nome ou outro termos decorado em uma sala massificadora onde decorar te eleva, mas individualidade de nada vale em uma sociedade onde ou se encaixa no molde de outrem ou vai-se embora pro sertão ser da pobreza outro refém.

Por um segundo sorrio-me. Olhei, olhei, encarei, encarei, hahaha, hihihi. Não houve ação, não houve reação, todos olham pra frente, só querem chegar em casa e colocar os pés no sofá para ligar a televisão e recomeçar mais uma sessão de sutil alienação. Bato o pé contra a terra e o cimento, passo pela praça da Igreja e no meu ato do dia de rebeldia contra o sistema, passo sem fazer qualquer sinal, sem qualquer respeito. Como se fosse ousado – nunca fui, jamais serei – eu olho sem pudor pelas janelas abertas de algumas casas elegantes e assim me infiltro, parasítico, nas vidas de outras famílias. Vejo as mesas de madeiras cobertas com pano branco, lotadas de bolos, frutas, pães e lembranças que não são minhas, mas que naquele momento tomo pra mim e devoro desvergonhado: vejo-me claramente ali, numa outra existência, conversando sobre como a ditadura estava insustentável ou sobre quão corajoso de Gaulle era por enfim desafiar os pérfidos americanos, enquanto deliciava-me com bolo de baunilha e creme, tomava café morno e mordiscava-se uma manga recém colhida.

Continuo andando, olho outra coisa, olho outra vida que poderia ser minha. É um quarto simples, quase tanto quanto o meu, mas cheio de pequenas marcas únicas que eram como migalhas de individualidade deixadas pelo dono: um quadro de uma paisagem desconhecida, um travesseiro posicionado de forma engraçada, blusas amassadas de um jeito específico sobre a cama torta. Penso em entrar pela janela, preencher o meu vazio incompreensível com a personalidade que prosperava ali, mas então caio em mim e percebo que o que me atormenta não seria combatido por um quarto. Continuo a andar, respirar, andar, respirar, piui, andar, respirar, piui, piui, andar, respirar, piui, piuiii, piuiii, piuiiii. Piui.

Ah, finalmente! Antes de perceber, estou nos portões verdes que sinalizam a entrada para uma mata na cidade, a tal da Mãe d’Água. Não achei-me nas pessoas da rua, não achei-me nos quartos e cozinhas e lembranças das casas dos outros, mas quem sabe eu não me acho na natureza, como tantos outros bravos exploradores que em miraculosas jornadas enveredavam-se por dias, meses e até anos em jornadas espirituais nas regiões mais selvagens e perigosas do planeta. Eu não tenho o dinheiro, muito menos a coragem, então o máximo que faço é entrar naquela mata por demais civilizada, sentar-me em um dos bancos de madeira e ficar a olhar as árvores esperando que por alguma providência divina do céu recaía sobre mim a tal plenitude que enfim vai me salvar da melancolia. Espero, observo, vejo o tempo passar e até começo a me sentir como um pedaço de madeira que faz parte da floresta, mas mesmo respirando um ar mais fresco e tendo a pele sendo acalentada pelo transpirar gelado das plantas, ainda me sinto sozinho, não-entendido. Todos adoram dizer carpe diem, saia mais, abrace e beije, mas por que eu deveria fazer isso? Com quem? Se deito na minha cama, logo consigo sair de mim mesmo e passear por lugares que jamais verei. Pisco e estou andado por Montmartre, pisco de novo e estou nos amplos camplos de Provence, viro o rosto e estou a me admirar com Nossa Senhora do Pilar, mas não importa aonde eu vá ou quem eu veja, continuarei a ser aquela pessoa do quase. Não consigo ser completamente feliz, completamente livre, não consigo ser completo. É sempre um ah, estou feliz, mas… Depois vem o ah, eu me sinto livre, porém… De onde vem o nada, afinal? Como do nada surge o nada que reduz-me a nada e do nada finda-se voltando a ser nada que do nada ressurge? Somos todos nada, no fim das contas, que vez ou outra consegue criar algo e enfim nos completar. Uns conseguem por conta própria, em seu trabalho, em sua arte, em sua luta diária para não perecer sem dignidade, já outros conseguem com um outro alguém, com um amado, com um cachorro, com um amigo, com uma família, porém então fica a questão… Se nada somos, nada temos e nada podemos, mas em dado momento algo nos tornamos, algo criamos e algo podemos, não somos todos nós deuses? Não são aqueles que do nada conseguem sair tão divinos quanto as pessoas do contos há milhares de anos escritos? Melhor continuar a procurar sem saber o que se quer achar. Procura, piui, procura, piui, piuiii, piuiiii.

Ando até chegar na outra ponta da mata, já até vejo a casa do meu pai onde um dia morei com uma família outrora completa que passou pelo processo inverso ao meu: se antes era tudo, agora é parcial, fragmentado. Um dos cachorros vem me receber e até sorrio-me, aquela cadela é como um vislumbre da plenitude que tanto ouço falar. Meu pai avista-me de longe e logo volta a trabalhar como a máquina que sempre foi, junto de meu avô que bem sei ser triste e que se ainda insiste em trabalhar, é na tentativa talvez simplória de mesmo tão tarde na vida encontrar a si ou em si algo que faça de uma existência cansada algo além de mero desperdício de tempo e sim uma verdadeira jornada que se finda com a descoberta de um tesouro. Sol brilha radiante, parece tentar com todas as suas forças animar minha alma gelada e, talvez por seu esforço ou por pura piedade inconsciente de minha mente, consigo criar na cabeça um teatro bem elaborado de vida feliz e perfeita de menino livre sem amores que não o amam e assim fingir com sinceridade, durante alguns segundos, ser alegre e talvez até desprovido de partes, apenas de todo.

Subo as escadas, chego em casa apressado e sinto um cheiro estranho vindo da cozinha. Vou até lá, com outro cachorro já se emaranhando em meus pés, vejo sobre a mesa água de coco e um estranho cheiro salgado de peixe me invade as narinas como soldado ousado. Paro, penso, respiro, penso outra vez e com calma de rapaz comportado chegando na escola, desço as escadas já ciente do que poderia me completar: mergulhar, apreciar, velejar e me entregar ao mar. Aqui temos árvores, temos cachoeira, temos gente boa e comida melhor ainda, mas não temos um mar. Qual o problema comigo? Vejo-me a atirar na imensidão, ondas quebrando-se sobre si mesmas e girando num vendaval caótico que não precisa seguir qualquer norma, apenas roda. Imagino pessoas a surfar, povo sentado na areia da praia enquanto tampa os olhos de reflexo solar que se reflete na superfície azul e eu? Estou a dissolver, estou a livrar-me do que é parte que não completa e que envenena, pois deixo de existir como sou para ascender a uma nova vida de plenitude em que faço parte de gradeza, mas, ah, dói-me. Ah, como dói-me. Estou distante, inalcançável e quando penso bem na tolice do que penso, lembro-me que não basta se entregar e se sacrificar, é necessário ser aceito por aquilo que te engrandece, pois se não há reciprocidade, não há uníssono, não há o que completar e cria-se apenas um vazio superior que sustenta sobre si névoa densa que até cria ilusão de algo, de tudo existir, mas que é somente evaporação de sonhos abortados mais leves que a realidade e que por isso sobem no ar. Bom mesmo é ser máquina, ser trem, andar, andar, piui, piuii, piuiii, piuiiii, piuiiiiiiiiii.