Flora

Roberto era um fazendeiro que possuía uma pequena propriedade numa pequena cidade do interior. Era um homem de meia idade, porém sua pele, tão judiada pelo esforço excessivo de um diário trabalho pesado sob o sol quente, o aparentava ser mais velho do que sua própria idade real.

Ele era um homem muito rancoroso. Já havia vivido muitas coisas, onde muitas delas terminaram em insucessos. Tivera 4 filhos, onde um morreu ainda criança, os outros dois foram estudar na cidade grande, criaram carreira profissional próspera e, por fim, se afastaram das duras origens, e o outro filho sumiu no mundo para viver aventuras inconsequentes. De certa forma, todos seus filhos o haviam deixado.

Sua esposa, Clara, pelo contrário, esteve ao seu lado em todos os momentos, dos difíceis aos felizes. Ela não se importava com as chatices de Roberto, pois sabia ser dura com ele quando necessário, para fazê-lo largar a mão de ser besta.

O problema é que Clara ficou muito doente, e com o tempo, muito debilitada. Nesse momento, Roberto havia percebido que era muito fraco sem a sua esposa por perto. O plantio ficou totalmente sem cuidados, pois roberto não conseguia ficar longe de Clara. Seu desespero pela situação era tanto, que era ela que o acalentava e não o contrário.

Em nenhum momento Clara temeu a morte, e soube fazer a passagem com muita serenidade. Porém, toda a morbidez que a fazenda passou a carregar foi devido aos sentimentos depressivo de Roberto, que não aceitava a perda de sua esposa. Mas com o pouco de dignidade que lhe restava, ele fez o enterro dela dentro dos padrões que o povo da cidadezinha estava acostumado, e todos que conheciam Clara puderam homenageá-la enquanto era velada e sepultada. Roberto não quis conversar com ninguém e decidiu voltar para fazenda.

Seu coração havia ficado duro e seco. Essa era a forma que ele havia encontrado para suportar tantas perdas. Ele pensava “Se a vida é dura comigo, Vô sê duro cá vida”. Desde então, ele decidiu não ter mais amigos e suas únicas relações eram apenas comerciais. Plantava, colhia, vendia, pagava as contas e se alimentava. A vida passou a ser apenas isso, pois sem envolvimento, sem sofrimento.

Com o passar dos anos, Roberto viveu assim, porém num dia de plantio, Roberto pegou suas ferramentas e as sementes e notou algo estranho:

- Uma semente amarela? – Ele olhava para uma minúscula semente que se destacava das demais. Ele achou que a mesma estava estragada, mas analisando melhor, pensou que não poderia ser esse o caso, já que a semente tinha um brilho dourado singular.

Ele decidiu, então, fazer um pequeno vaso e plantar aquela única semente nele. Estava curioso para saber que tipo de planta nasceria dela. Estranhamente, uma sensação de felicidade despertou em si, e após regar o vaso, foi a labuta cantarolando, coisa que não fazia a anos.

E por todo o período do plantio à colheita, Roberto manteve essa mesma felicidade. Ele mesmo nem reparou nessa mudança, mas a vizinhança sim. Era possível ouvir fofocas como:

- Que bixo mordeu o Beto? Tá tão istranho...

- Deve sê um rabo de saia.

- Deve tê ficado pancada.

- Deve sê o ciático.

Ao mesmo tempo, ele acompanhava o crescimento de sua mudinha a cada dia que passava, ansioso para descobrir o que nasceria dali, tanto que o vaso ficava em seu quarto, sobre um criado-mudo ao lado de sua cama.

Depois de uma boa noite de sono, Roberto ouviu uma vozinha aguda, bem longe, em sua mente, dizendo:

- Olá? Poderia acordar? Acorde, por favor.

Roberto achou que fazia parte do sonho e continuou dormindo.

- Senhor – continuou a vozinha – Acorde, por favor.

Ele, então, começou a abrir os olhos, com dificuldade, devido ao sono, porém quando sua visão passou a ficar mais nítida, ele se assustou.

- EITA, FIOTE DE CRUZ CREDO! – ele gritou, após um salto que deu para fora da cama, ao ver que o que havia acordado foi uma flor, de pétalas douradas, parecendo uma margarida, com olhos e boca, como se fosse gente.

- AHH! – a flor se assustou colocando as folhas, que seriam seus braços, cobrindo os olhos por causa do medo que sentirá da reação de Roberto.

- M... mais que diabo é ocê? – indagou Roberto.

- Seu bruto! – esbravejou a flor – Eu sou uma flor.

- Mais ocê fala – Roberto disse ainda assustado, então começou a fazer o sinal da cruz – Isso num é di deus não! Só pode sê coisa do Capiroto.

- Capiroto? Mas o que é isso? – perguntou a flor.

- Sabe não? É o Tinhoso, a Besta, o coisa ruim, Chifruto, o Pata rachada, o Belzebu, o Demo...

- Nossa.... – A flor ficou com repugnância e tristeza em seu semblante – Então você me considera algo ruim e desprezível só... só... – então ela soluçou – só por que eu... falo? – então a flor começou a chorar baixinho, cobrindo os olhos.

Roberto achou aquilo tudo muito estranho, porém quando a flor começou a chorar, ele se sentiu mal e culpado pela situação, ao ponto de ficar envergonhado com aquilo. Ele refletiu sobre aquela estranha cena. De fato nunca tinha visto uma flor falar, mas ele lembrou de seu velho, já falecido amigo, Roberval, que tinha a fama de ser lobisomem. Até o próprio Roberto teve a impressão de tê-lo visto transformado numa noite. Então ele chegou a conclusão que uma flor falar não deveria ser tão estranho quanto aparentava.

- ô, frô – disse Roberto meio sem jeito – Discurpa eu. Eu sô meio bronco mêmo. Crara falava que era pió qui burro impacado.

- Você fala de um jeito engraçado – riu a flor – Não se preocupe. Sei que não é comum uma flor falar, mas é porque eu aprendi a me comunicar uma vez que fui plantada dentro de uma estufa e sempre minha cuidadora conversava comigo e me ensinava muitas coisas, e também ela se abria comigo. Então, um dia, com muito esforço, consegui responder para ela; Desde então, sempre que sou plantada, consigo conversar com os outros.

- Uai... Eu num tô intendendo nada – disse Roberto coçando a cabeça.

- Por que não? – retrucou a flor.

- Essa história de se prantada varias veiz. Como ansim? Num faiz sentido pra mim.

- Entendi sua dúvida – respondeu a flor – A vida de uma planta qualquer se dá pela quantidade de vezes que a sua semente única é plantada.

- Semente única? – Roberto perguntou.

- Sim. As plantas sempre geram sementes que, se plantadas, dão vidas a novas plantas. Mas a semente única é a essência de cada planta, que é gerada na hora de nossa morte. Nela que colocamos nossas experiências, nossas vivências, nossos sentimentos, e que quando plantadas, renascemos com essas lembranças.

- Qui interessanti – disse Roberto, surpreso – Num sabia disso não. Quer dizer, intão, que uma pranta nunca mórri, né?

- Só se ela conseguir gerar essa semente única, pois é um trabalho difícil. Depois se essa semente for plantada e sobreviver ao processo de nascimento, só, aí, isso dá certo. Acaba sendo muito desgastante para nós, e muitas suportam gerar essa semente apenas duas ou três vezes em sua vida, devido a dificuldade. A maioria se rende a morte pois acham que é muito penoso continuar vivendo – respondeu a flor.

- Inté dá pra intendê – Roberto refletiu – Pruquê deve sê chato a vida de pranta, paradona no mêmo lugá sem fazê nada. Magina?

- Só se a planta for boba e querer viver a vida desse jeito – reclamou a flor – O mundo tem tanto para oferecer, que é um desperdício de tempo ficar parada fazendo sempre a mesma coisa. O fato de eu não conseguir me locomover, não me impede de descobrir lugares diferentes. Pelas nossas raízes, conseguimos nos ligar a raízes de outras plantas, que estão distante de mim, desde árvores à gramas, e eu consigo conversar com elas e descobrir muitas coisas. Fora que toda vez que sou replantada, sempre nasço em um lugar diferente.

- Impressionante – disse Roberto, cada vez mais curioso pela sua nova e singular amiga – Vixi! Mais ocê nesse vazin num vai conseguí cunversá cas otras prantas. Preciso pranta ocê lá fora.

- Não se preocupe com isso – respondeu a flor – Eu gosto de ser plantada em vasos, porque sempre tenho contato direto com os humanos, e sempre aprendo muito mais com eles do que com as plantas.

- Tá bão. Ocê que sabe – então Roberto bateu com a palma de sua mão na sua testa – Eita, sô muito tronxo mêmo. Nem falei meu nome procê. Sô Roberto, mais pode me chamá de Beto.

- Eu sou Flora – ela respondeu – Prazer em te conhecer.

- Prazer, Frora.

- Você realmente fala engraçado – ela deu uma risadinha.

Então Roberto passou a levar Flora junto com ele para todos os lugares onde ia. Não importava com o que as pessoas falavam dele por carregar um vaso com uma flor, mas só pedia uma coisa para Flora, que era não conversar com os outros.

- Por que não? – ela perguntou.

- Vai assutá todo mundo. Corre o risco de quererem ti jogá fora. Mió evita os pobrema, né mêmo?

- É, você está certo. Você, que me plantou, já teve um troço só de me ver, imagina os outros, hehehehe – Flora e Roberto riram.

Flora acompanhava Roberto também no plantio e dava concelhos para ele do que colocar na terra para as plantas crescerem mais frondosas. Também acrescentou:

- Dessa forma, você estimula as plantas a criarem suas sementes únicas, e sempre depois que colher, você pode plantá-las de novo, que elas sempre vão lembrar dos seus cuidados e sempre vão crescer tão belas como agora.

- Oxê! Brigado pela dica.

Flora estava sempre conversando com Roberto, e ele sempre ouvindo atentamente. A dureza de seu coração foi facilmente se findando, pois Roberto era uma pessoa simples e humilde. Ele sempre deu valor para aqueles que sabiam mais do que ele, e não seria diferente com Flora, mesmo ela sendo uma flor. Roberto, por sua vez, conversava bastante com Flora, contando toda sua vida, suas lutas, suas dores e suas alegrias, e Flora sempre se envolvia com cada palavra que Roberto proferia.

- Sabe, Frora – disse Roberto enquanto tomava uma xícara de café – Eu lutei tanto pra dá o mió pros meus fios, mais eles rezorveram me dexá. Nem déro notícia. Tirando o Abelardo que foi cedo, os otros foram tudo imbora e nem pra ligá, pra manda carta, nada. Tudo uns ingratos.

- Credo – Flora se espantou - Do jeito que você fala, parece que eles fugiram da sua casa, ou coisa assim.

- Bem... – Roberto coçou a cabeça – Num foi bem ansim mêmo não. Os treis se despedirô de mim e Crara e forô vive a vida deles.

- E por que você está reclamando disso? Não queria que seus filhos fossem construir algo próprio? Queria que eles ficassem presos aqui para sempre? – indagou Flora com indignação – É muito triste. Eu que sou uma flor, preciso conhecer coisas novas. Vocês humanos, que tem pernas para andar por aí, precisam, sim , ir atrás do seus sonhos.

Roberto soltou um suspiro e respondeu:

- Ocê tem razão. Inté cumigo foi ansim. Quis construir minha fazendinha, casá com Crara, tê meus fios, insiná coisas boas pra eles, cuidá da horta. Axo que num é justo cum eles, né?

- Eu te entendo, Beto – Flora sorriu docemente para ele – Você queria estar com eles, aqui no seu lado, porque você os ama muito e você quer demonstrar isso. Dá para perceber só pelo jeito que você fala. Mas seus filhos precisavam viverem as próprias vidas pelas próprias escolhas. Só assim, tudo aquilo que você os ensinou terá valor, pois eles verão tudo isso na prática.

- Vredade.

- Eu sei que os humanos não produzem sementes únicas, como as plantas, até porque vocês não nascem da terra, mas vocês vivem o suficiente para aprenderem coisas profundas. Para mim é muito arriscado buscar viver mais do que eu posso, por isso aproveito ao máximo o tempo que tenho para buscar sempre aprender mais. Porém, como ia dizendo, a semente que vocês, humanos, produzem, são sutis e são plantada nos corações das pessoas. Seus filhos devem ter a sua semente no coração deles. Eles devem ter você nos atos deles. Até mesmo aqueles que morreram devem ter você no coração deles.

- Será mêmo? – Perguntou Roberto com semblante radiante.

- Eu acredito – Flora respondeu.

- Puxa, Frora! Ocê fala muito Bunito! Fazia tempo que não ficava feliz ansim, que nem quando estou cum ocê! Brigado por tudo mêmo! – Roberto correspondeu com muita alegria e entusiasmo.

- Que isso – Flora ficou encabulada.

- Vô iscrevê pros meus fios. Mêmo arnafabeto, Genésio vai mi ajuda. Vô fala que amo eles e qui eles são minha semente – Roberto disse animado.

- Muito bom. Faça isso sim – ela respondeu feliz, sorrindo.

Passou um mês de convivência, e num determinado dia, Roberto acordou e viu Flora murcha em seu vaso. Ele ficou aflito e correu para ampará-la.

- Frora! Frora! Deus meu! Guenta firme!

- Oi... Beto... – ela respondeu com a voz bem fraquinha e ela estava trêmula – Meu corpo... já não aguenta... mais...

- Como ansim...? – Roberto estava choroso.

- Flores vivem pouco tempo... Eu já... passei por isso.. AH – o caule de Flora não suportou o próprio peso e ela começou a cair, mas Roberto conseguiu ampará-la com a palma de sua mão – Obrigada... É por esse... motivo que... já fiz a minha semente... única.

- É mêmo! – um brilho de esperança cintilou nos olhos de Roberto – A Semente Única! Vou prantá logo em seguida intão!

- Eu... vou pedir para... você não fazer... isso... – ela respondeu com dificuldade.

- Pru que? – Roberto ficou estupefato.

- Quero... que a sorte.... me leve para... um novo... lugar que... mereça ser... plantada – ela tossiu - Só assim.. vou ter a... motivação... para viver novas... experiências. Minha natureza... é conhecer... novos lugares..., ver a... beleza do mundo... dos seres – então ela olhou no fundo dos olhos de Roberto e deu um belo sorriso – e das... pessoas,... assim como vi... em você.

- Frora... – Roberto ficou surpreso, e sua tristeza e desespero se atenuaram, transformando em respeito e apreço por Flora. Ela havia feito muito bem para ele e não era justo que um tesouro desses, em forma de flor, ficasse preso em um vaso, preso em sua casa. Ele ajeitou-a cuidadosamente deitada sobre o vaso e falou – Ispere só um minutinho. Vou te levar prum lugar – Então ele vestiu sua roupa de andar na mata, pegou uma pá de jardim e pegou o vaso e saiu com Flora floresta adentro.

Depois de algumas horas subindo uma montanha, Roberto chegou no topo, foi na beira do cume, onde dava para ver toda a imensidão da serra que cercava toda a extensão verde da Floresta. Ele abriu um pequeno buraco no solo, tirou Flora cuidadosamente do vaso e a plantou no alto daquela montanha.

- Óia, Frora – disse Roberto apoiando Flora com sua mão para que pudesse ficar na vertical – Essa é a vista mais bunita qui eu conheço e eu queria ti mostra.

- Nossa... Beto – Flora ficou maravilhada com a vista – É... é... incrível...

- Aqui o vento bati forte, intão vai levar sua semente única pra onde deve ir – ele sorriu para ela com sinceridade.

- Obrigada... Beto... Vou sentir... saudades – Flora derramou uma lágrima.

- Eu também – Roberto enxugou suas próprias lágrimas e acariciou as pétalas de Flora – Adeus... Frora...

- Adeus... Beto... – e ela fechou os olhos. Roberto repousou-a cuidadosamente sobre o solo e a admirou. Era como se estivesse dormindo, serenamente. Veio em sua lembrança Clara, da mesma forma...

Roberto desceu a montanha sem olhar para trás e, por incrível que pareça, estava com o coração leve e feliz. Ele sabia o que devia fazer e correu para chegar o mais rápido possível no vilarejo. Correu até uma casa e bateu na porta, gritando:

- GENÉSIO! AQUI É O BETO, CUMPADI! PRECISO DA SUA AJUDA!

André de Godoi Lopes
Enviado por André de Godoi Lopes em 31/07/2018
Código do texto: T6405815
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