A flor que muda de cor
Existem em mim pequenas explosões pedindo mudanças. Essa crônica era para se chamar “Metamorfoses”, mas seria um nome óbvio demais. Ontem foi o dia do escritor, pensei então fazer uma junção, e o nome passou a ser “A metamorfose de um escritor em seu dia de casulo”. Ponderei, porém, escritor não tem dia, tem momentos, e o novo nome ficou mais complicado: “Metamorfose de momentos de um escritor no casulo”.
Resolvi decidir depois do fim.
Esses pensamentos duram um minuto, tempo que fico com a boca aberta, um sorriso permanente na cara, olhos fixos num local aleatório.
Ocorre então o estalo, retorno trazendo nos olhos a imagem enquanto pensava: uma flor pequena e frágil, exposta no canteiro do lado de fora da janela do meu escritório; feinha, mirradinha, do talo crespo e das folhas secas.
A flor forma um sorriso, acena o convite ao velho passeio, faz surgir um quadro guardado na memória,
Saudade é aquela dor gostosa, um pontinho na testa, coça como casca de ferida secando e a gente cutuca, para não deixar nada se perder.
E lá estava minha avó, numa imagem de tapar os olhos, porque o sol ardia na rua sem asfalto, encharcando a testa de suor.
Depois do muro de balaústre existia o meu quintal e nele jazia num canto essa mesma flor, levemente diferente, com um casulo grudado no talo, guardando a lagarta, até um amanhã no qual emergiria a borboleta em seu primeiro vôo.
Metamorfoses sempre me atraíram; sou o cara do comercial na tevê, sou também o dono de uma empresa de ar condicionado e aquele senhor que fez a turba sorrir no teatro, se transformando numa senhora de poucas virtudes, num médico biruta ou teve crises na pele de um velho com sotaque italiano.
Metamorfose é febre.
Eu já fui tímido, calado, retraído, só depois dos quarenta o teatro entrou em mim e, desde então, consigo ouvir o murmurinho da inquietude antes escondida, depois a estranha sensação de efervescência, e de repente sou outro, nova casca, olhar noutra direção, o casulo jogado fora e um par de asas prontas para voar.
No meu rosto marcado por certezas, imagino outras metamorfoses, mas a terrível dor do medo não me permite enxergá-las com exatidão.
O quintal de antes surge novamente.
Minha avó tinha o nome ligado à natureza: Aurora. Ela também se transformava, era tomada pela febre, sabia benzer e escrevia orações escutadas dos espíritos.
Quando se aproximava e trazia a celha carregada, olhava para a flor, acariciava o casulo com uma mão, a outra grudada na testa: ‘será uma borboleta vermelha!’ Então sorria. Dias depois, asas vermelhas se abriam para o vento e restava o casulo oco arrastado pelo vento.
Lolinha sabia quando cairia a chuva só de olhar as plantas: “elas se encolhem, envergam em conchas, pedindo água” afirmava em tom austero e era dito e feito.
Sobretudo em dias sofridos, falava com a flor: “se aquieta, ainda não é momento de mudanças”. E a flor abraçava mais forte o casulo, pensativa, sem sorrir, mas se sentindo protegida das garras das abelhas.
Aurora assopre em meus ouvidos a cor da borboleta que virá depois da tempestade trazendo a bonança!
Ó Deus, se tu existes, um dia me conta onde foi que guardou a minha avó!
Novamente fixo os olhos na flor e não vejo mais o sorriso. Sente falta do casulo? Ou será receio pela descoberta de novas metamorfoses?
Se pudesse falar comigo, aquela flor, sensível como todas, rebateria minhas dúvidas, devolveria algumas certezas, mostraria o caminho à irrecusável metamorfose.
Aprecio metamorfoses, mas sinto o medo quase infantil de mudanças.
Então abate-se o atro escuro da pedra, abruptamente me transformo num senhor casmurro, penso na tarefa do dia, o dinheiro que preciso ganhar e recuso tudo o mais desprendido daquela flor.
Sei, no entanto, preciso saber onde ela guarda a semente, e assim, manter imorredoura todas as metamorfoses.
Um dia, quem sabe...
E a flor fita o chão sem sorrir, mas é coisa de momento.
Embora pairem sobre seus galhos algumas dúvidas, do lado de fora da janela, eu sei, suas pétalas mudam de cor.