CRIME E CASTIGO

O sargento Meireles levantou a cabeça dos papéis onde estava mergulhado e cumprimentou o soldado que entrara na exígua sala.

- Então, Luís, como foram essas férias? Sempre curtas, não é verdade?

- Sempre!

Conversaram um pouco sobre trivialidades até que o Luís perguntou:

- Então, há muitas novidades?

- Bem, há uma que se destaca… - o sargento fez uma pausa e depois continuou – houve um crime e duas mortes…

- Oh, caraças… Quem?

- Lembras-te da D. Ermelinda, aquela velhota magra, sempre de preto, que oxigenava o cabelo e usava demasiada maquilhagem? Pois ela e o marido morreram…

- Como foi isso?

- Parece que a velhota sempre fora ciumenta e há algum tempo se convencera que o marido, mais novo como sabes, tinha outra… A D. Ermelinda sempre fora muito católica, até dava catequese aos miúdos da freguesia e tudo. Em casa também rezava muito, mas parecia-lhe que as orações não estavam a resultar.

Movida por fortes ciúmes, foi a uma bruxa que mora na povoação aqui ao lado e encomendou-lhe umas mezinhas para evitar que o seu Francisco caísse na tentação… até chegou a levar à bruxa alguma roupa interior dele, para lhe afastar a vontade, entendes?

- Pois…

- No entanto, continuou a não dar resultado, ele parecia-lhe indiferente e ela, num dia de raiva, decidiu-se: “se não és meu, também não és de mais ninguém…” e a partir daí sempre que cozinhava arroz começou a misturar vidro moído na comida.

Quando ele se queixava de “umas pedrinhas” no arroz, ela desculpava-se que o arroz era integral, sem processamento algum, daí parecer mais grosso e indigesto…

Algum tempo depois ele começou a ter pequenas hemorragias internas, que se foram agravando até que um dia foi parar ao hospital, contorcendo-se com dores. Francisco morreu no final desse dia. Como estava muito magro, pensou-se que fosse câncer, mas uma irmã denunciou as suas suspeitas e foi feita uma autópsia, que revelou estarem os intestinos do morto cheios de vidro moído e com inúmeras lesões.

A conclusão foi óbvia e a Polícia Judiciária logo interveio. O breve interrogatório feito em casa da suspeita, levantou muitas reservas aos polícias e resolveram inquiri-la na esquadra. Antes de irem para a delegacia, D. Ermelinda disse ter muita sede e pediu um copo de água. Respeitosamente, deixaram-na sozinha na cozinha e breves instantes depois ouviram barulho. Acorreram e viram-na a espumar, revolvendo-se no chão em convulsões e apertando na mão um terço de prata. Ao lado do corpo estava um pequeno pacote quase vazio que descobriram ser de veneno para ratos. Morreu no meio do maior sofrimento, não inferior ao do seu defunto marido.

No final da narrativa, Meireles esfregou as mãos e rematou o seu discurso:

- Eu sei todos estes pormenores porque li os autos da PJ, não sou adivinho...

- Livra! - disse Luís. - A velhota era de fibra!

- Sem dúvida. Já agora, sabes o que te digo? Tem cuidado com tuas aventuras… Se o padeiro sabe que andas enrolado com a mulher, a agência funerária vai ter mais serviço, ai vai, vai…

Luís olhou para o sargento com ar espantado e ao mesmo tempo com algum temor.

Meireles deu-lhe uma amistosa palmada nas costas e disse:

- Estou a brincar, mas pelo sim e pelo não tem cuidado com as tuas aventuras, Luís…

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 31/07/2018
Reeditado em 31/07/2018
Código do texto: T6405193
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