Ziguezagueando 46
Depois de uma longa conversa com José, Hugo se retirou do local, decidido que ali seria sua última residência.
Chegou em casa com a sensação de quando jovem, após ter visto seu nome na lista dos aprovados, no Curso Superior em Psicologia.
Chegou valente de mente, apesar do corpo físico titubeante, com os movimentos sinalizando que portava as nevralgias, desconfortos e dores típicas da idade, que passaram serem mais intensas no último ano.
Andava menos rítmico, com dificuldade, elegeu uma bengala como apoio no andar, assumiu-a depois de longo tempo de resistência. Com um pouco de reserva, pouco a pouco foi acostumando à ideia.
Acendeu em Hugo a chama do recomeço, sabedor que poderia ser o último de sua existência, pedia ressonância com a vida, em si pulsava o desejo antigo de uma finalização interior, que estava inacabada. Jovita não deixou ao menos rastros da grandiosidade que disse estar possuída, quando estava prestes a deixar o corpo.
Hugo sentia que o relógio passou sinalizar para si um cronômetro que compelia-o tomar atitude, a responsabilidade pessoal de encontrar uma meada no novelo. A mente que ancorou-o para ser ele, com tanto, naquela idade avançada, necessitava absolver o mundo, deixá-lo correr em seu interior adentro, sem resistência.
Como uma gota necessitando absorver o oceano, passou ser sua necessidade primeira, tomar a própria consciência nas mãos, e soprá-la, diluindo-a como pó, esquecer que tinha a capacidade da discriminação, do bem e do mal, do justo e do injusto, do ontem, do hoje, e do amanhã.
Não queria se importar mais com os aspectos Lunar e Solar em si. Chegar ao êxtase, que estas duas naturezas de sua psique entrelaçadas, num verdadeiro acasalamento...mesmo que por alguns instantes. Teria certezas, ao menos vislumbres da possibilidade de ter encontrado sua própria essência.
Escolheu alvo perigoso para querer decompor, o próprio ego, queria se desconstruir. Como fosse o próprio Criador querendo conhecer quem o havia constituído, assumiu nova atitude em relação aos próprios sentidos, tentando a remoção dos apegos as dores e aos amores, e aos preconceitos que o prendia a este mundo, queria encontrar a casa donde o levou a ser gente.
No desfazimento daquilo que não levaria para a Casa de Abrigo, levou para o lixo muita coisa, dentre tantas, relíquias de família, objetos sem valor econômico, mas que marcaram datas, simbolizando emoções fortes, vinculadas a pessoas e acontecimentos importantes.
Das suas roupas, escolheu alguns pares de calças e camisas, roupas íntimas e sapatos. Todos os pertences couberam em uma mala média de mão, e outra grande de rodinhas.
Roupas de cama, banho, higiene pessoal, deixou a cargo da administração do abrigo. Entregaria o dinheiro ao responsável da nova morada, que providenciaria a compra, na medida que necessitasse.
Alguns dias depois, estava instalado na Casa de Repouso Eclipse Solar.
Dormia com mais dois velhinhos, Jonas e Hudson, setenta e cinco, e oitenta, respectivamente, sua cama ficava na última divisão, próxima a uma pequena saleta, com um sofá e uma mesinha com abajur.
O desafio estava lançado. Queria a plenitude como última conquista. Não pela repressão e aniquilamento dos sentidos e emoções, mas indicava a tentativa de, pelo desenvolvimento e sublimação de todas suas faculdades, incorporar a paz última, fazendo as pazes com sua própria natureza e a do mundo, aceitando a transitoriedade, fazendo posse dela definitivamente, participando dos próprios sofrimentos e das alegrias na fluidez do agora.
Em razão da nova postura, dele para com ele, e com o mundo, ousava a busca da apropriação da compreensão suprema, transformado tudo num sentido mais profundo, mesmo que fosse por aquele caminho, longe da sociedade e da família, numa ação aparentemente egoísta, radical, penosa.
Hugo estava apaixonado pela causa do seu próprio interior, ousou querer conectar com a possibilidade da transformação em si, do visível, exterior revelado, mutável, transitório, ao invisível, verdadeiro fundamento de sua existência.
Queria estimular o interior para a luz e liberdade latentes,
participante de uma experiência de indiferenciação inenarrável, que dizem existir em todo ser humano.
Para aquele homem, de idade longeva, somente seria possível, se levasse à machadada, a desmaterialização da crosta dura do seu ego individual.