Ziguezagueando 44
Ziguezagueando 44
Olhou o entorno tentando fazer a leitura de modo imparcial, isenta de questionamentos, sempre chegava numa única conclusão, aquela recepção era diferente de todas as outras que havia visitado. Recebiam quem chegava homenageando com fotos de velhinhos, que indicavam serem antigos moradores do local.
Hugo, na prática do ser curioso, dado ao esbulhar o visto até os ossos, enquanto não aparecia funcionário para atendê-lo, aproximou-se lentamente do mural de fotos, foi enfileirando pela visão um a um dos representados.
Eram muitos, uns sorrindo, outros, nem tanto assim. Tinha os que não se esforçaram, de semblante fechado, deixaram ser fotografados. Quase a totalidade deles imprimiram em suas fisionomias, aspectos de missão cumprida, um quê de “sou, fui, e daí, fiquem aí, terminem o que tem a realizar”. Esboçavam certa liberação de força, sentimento de dever realizado, tarefa de casa feita.
Hugo colocou um pouco deles em si, se sentiu no mesmo patamar de limite e capacidade. Naqueles instantes, experimentou a si mesmo saindo voluntariamente da sociedade. Começou pelo núcleo familiar, como primeiro a ver aniquilado, depois, indo liberando outros tratos feitos com o mundo, num efeito cascata ascendente, primeiros atos de retorno, descompromissos de sua personalidade.
Num insight,atinou para o chamado, a proposta da voz interior de começar a reversão do processo montado do homem que foi, construído por anos de vida.
Com mais de noventa e dois anos, necessitaria ir tirando as cascas que o mantinha na individualização como ser humano, deixar de ser único, passar fazer parte de um grupo característico de sua idade, para, quando a interrupção da vida no corpo chegasse, pudesse estar familiarizado com a rudeza do cala boca que a morte lhe aplicaria.
Não que foi a única alternativa restada, ir morar num lar para idosos. Poderia ter ido com Merlinda, continuar morando na casa que conviveu com Jovita, ou ainda, passar morar com um dos filhos do primeiro casamento, que não mediram esforços em convidá-lo passar com eles algum tempo.
O fato é que Hugo era de uma natureza mental que racionalizava, analisava o viver de forma objetiva. A longa idade, a morte de Jovita, o desacelerar natural para o ritmo que o viver num corpo gasto lhe impunha, fê-lo pensar na audácia de assumir a renúncia da vida em sociedade como atividade primeira.
O saber lhe pregou a principal peça, conhecer a ceroula suja que o mundo vestia para encobrir a sujeira mal cheirosa que tinha dentro, sabedor da imundície do que a peça guardava dentro.
No mais, trabalhou a vida toda enxergando a mente humana nos seus desacertos, vivendo por buscar através do embaçamento do funcionamento dela, soluções para o encontro de alguma felicidade para o outro.
Além do que, tinha uma enciclopédia de livros escritos, saberes condensados, que estampavam razões absurdamente inquestionáveis de que o emburreceu para o uso do intelecto para viver e conviver em harmonia, amor e paz, no grupo e nas diferenças. O fedor da humanidade provindo da doença expandida da desagregação com o melhor, com o belo,com as virtudes primeiras esquecidas pela geração decadente do seu tempo. E a lógica inafastável e quase irrefutável de que a humanidade tinha perdido a estribeira. Foi o que tornou-o decidido a evadir-se dela.
Passou querer ser esquecido, cancelado antecipadamente sua imagem do contexto social. Assim familiarizaria lentamente com a seu interior movediço, que lhe prenunciava que logo para ele viria o fim do corpo.
Demorava aparecer alguém na recepção, foi o suficiente para ir se sentindo incorporado na nova vida que lhe era oferecida, como que evadindo da sociedade, fazendo as primeiras expansões. Este seria o modo de ir dando os primeiros descansos às ilhargas que sustentou tanto tempo sua alma.