Amargo Arrependimento
Ele acorda aos poucos, desencantando-se dos sonhos da noite. Abre os olhos de forma vagarosa, quase como se fosse o primeiro despertar de toda uma nova vida, mas ao varrer os quatro cantos do quarto com os olhar, percebe que a única novidade é uma outra angústia. Os cães latem nas ruas e mesmo o viço de suas vozes logo pela manhã é insuficiente para animá-lo. Movendo-se como um autômato desprovido de razão – será todo humano sem amores um real autômato? – ele tira uma perna de cada vez de sua cama e vai para a sala, perder sua mente para a televisão pelas próximas duas horas até a padaria abrir. Passeia pelos canais buscando algo que enfim possa fornecê-lo algum torpor, alguma breve razão de ser, mas tudo que encontra são frivolidades típicas de uma manhã de terça-feira... Telejornais medíocres, programas de culinária, animações que já perderam toda a graça. Por fim acha um canal que parece ser um perfeito reflexo de sua alma: pura estática sem sentido, sem cores ou sons, apenas algo indefinido e incompreensível. Em outros tempos poderia ter se sorrido da ironia, mas agora só sente um leve calor no rosto, como se tivesse recebido um tapa na cara de uma senhora elegante. Por fim desliga o aparelho, buscando escapar da estática que reflete tão bem sua alma, mas toma outro susto ao ver sua imagem na tela negra. Não passa de um espectro desesperado.
Antes que perceba já são sete horas, enfim um momento de algum júbilo em uma existência tão cansada. Ele vai à padaria em passos lentos, totalmente tortos e caóticos, passos de alguém que há muito perdera qualquer controle sobre sua própria vida, sobre o que sente. Cumprimenta o padeiro com um bom dia seco e cuidadosamente seleciona seus pães: os mais torrados e crocantes. Com pressa de voltar para sua caverna, entrega uma nota qualquer e volta para casa sem nem sequer olhar para os lados. Faz o café, corta o pão, passa manteiga e por fim coloca quatro colheres bem cheias de açúcar numa xícara antiquada. Ele sempre foi exagerado em relação aos doces, se pudesse colocaria açúcar até nas pessoas e em um momento de tamanho amargor, nem todo o doce do mundo poderia aplacar sua alma. Assim, como pobre criatura estoica, vai a sala com seu simples café da manhã e olhando pro nada, sem mal sentir os sabores dançando em sua boca, devora tudo de forma tão mecânica quanto um mero robô abandonado.
Já são nove horas e o nada continua a consumir-lhe a alma. Ele anda para os lados como quem busca por algo valioso, olha pela janela tentando encontrar alguém que nunca veio – nunca virá – e recusa-se a entregar-se tão fácil ao vazio que parece cercá-lo por todos os lados. O céu já não tem mais os tons rosados de aurora, azul agora predomina e apenas poucas nuvens intercalam-se na imensidão celeste, um dia belíssimo para os olhos, mas obscuro para a alma. Sua irmã enfim acorda com o seu mal humor comum, mas ele já não sente vontade de irritá-la como acontecia toda santa manhã… Não, ele só espera que a irmã não consiga ver através de seu disfarce de normalidade, espera que ela não perceba a tristeza que o corrói por dentro como algoz insaciável. Decidido a fugir da melancolia, ele decide simplesmente andar pelas matas, ruas e bares. As pessoas sempre dizem que ver gente e ar fresco são remédios naturais para a mente, então talvez fosse uma boa ideia tentar, afinal, não havia muito mais a se fazer para sentir-se um ser orgânico além de aguentar essa dor que jamais passava.
Decidiu começar pela mata, antro verde da cidade denominado Mãe d’Água. De certa forma considerava-se como uma cria daquele lugar, afinal passava ali toda semana para chegar até a casa de seu pai e nunca deixou de parar para admirar a beleza do lugar. Na Mãe d’Água, vida em seu estado mais puro floresce em cada centímetro e explode nos olhos na forma de um encanto primordial, mas dessa vez nem os pássaros, nem as plantas e tampouco as flores despertaram no rapaz qualquer emoção que não fosse saudade. Depois de muito andar pelos caminhos de terra, mudou de tática e começou a passar pelos bairros, mas o tédio cortante das construções de cimento soavam ao moço como uma mensagem velada de que assim estava sua alma: cinzenta, áspera e fria. Poderia tentar os bares, fumar um bom cigarro, quem sabe até atrair a Morte um pouco mais cedo, mas desistiu diante da conclusão óbvia… Apenas encontraria mais um motivo para perder qualquer razão de viver. Voltou para casa sem flores, sem cigarros, sem beleza e sem alegria, carregava apenas um pesar doentio que queimava por dentro. Sentou-se no sofá, ligou a televisão, buscou entregar-se a tão falada alienação numa tentativa simplória de anestesiar seu espírito, contudo não conseguiu nenhum torpor. É… Parece que teria que continuar vivendo como autômato, mas ainda restava-lhe alguma esperança, pois uma hora a Morte chega silenciosa e ela nunca falha com quem precisa.