O Sóbrio
Era uma madrugada de sexta para sábado quando Arnaldo adentrou a casa, a escorar-se em objetos frágeis, completamente embriagado. Cantarolava um verso de alguma música de Chavela Vargas. Suava feito um porco e mal se mantinha em pé. Derribou três ou quatro vezes as chaves antes de acertar o móvel ao lado da porta.
- Por onde andava? - perguntou Helena, a aparecer em meio às trevas do ambiente.
Em movimentos lentos de cabeça, Arnaldo soergueu o corpo a vislumbrar a esposa. Então, respondeu-a:
- Trabalhei até tarde - redarguiu ele, a tentar manter-se aparentemente sóbrio. Contudo, exalava álcool pelos poros. - Muitas provas que corrigir, Helena. Muita coisa a se fazer!
- E eu seguindo a te esperar... - replicou ela. - Veja bem, Arnaldo, este é meu último aviso: na tua próxima bebedeira, não responderei por mim.
Antes de retirar-se, Helena obrigou-o a dormir na sala. Arnaldo fora tomar um banho frio, a fim de que se restabelecesse logo. Pensava nas palavras e nas expressões corporais e faciais da esposa: falava sério. A última vez que havia Helena falado daquele jeito fora quando ela o inquira se casariam ou não. Conhecia bem o modo de falar e de postar-se da esposa. Aquelas palavras tinham um cunho seríssimo afinal.
Os dias foram se passando. Arnaldo chegava religiosamente cedo em casa. Tornara a ler seus artigos acadêmicos e livros de literatura. Discutia com Helena algum pormenor político ou algum filme que estivesse passando na televisão. Planejava suas aulas e fiava-se a beber seus chás noturnos como antes fazia.
Naquela mesma semana, decidiu-se ele volver com o tratamento psicológico. Muitas vezes perdia-se em seus próprios devaneios e a única saída que encontrava era o limbo da embriaguez. O prazer momentâneo provindo da substância dos uísques, vermutes, cervejas e afins satisfazia-o enquanto apreciava estas bebidas. Contudo, o resultado deixado era sempre ruim: discussões estapafúrdias com a esposa, atrasos recorrentes no trabalho, perda de memória, indisposição física, etc. Sentia-se uma chusma nas manhãs seguintes. Não conseguia conjeturar quando aquilo iria parar.
Por fim, ao restabelecer-se, Arnaldo passara a ter uma vida mais calma e mais apreciável. Depois de muito tempo, conseguiu ver-se a perder peso naturalmente. Conseguiu ver cores na vida.
Entretanto, após um ano de sobriedade, decidiu-se ele comemorar com uma taça de vinho uma noite qualquer após o expediente de trabalho. Assim, passou a beber o que em um ano não havia bebido: absinto, conhaque, uísque, gim... Não conseguia parar; cria consigo que à Helena nada lhe pareceria após essa data de comemoração.
Ao chegar-se à casa, também uma madrugada, porém de quinta para sexta, acendeu as luzes. Parada no meio da sala, em diabólica expressão, Helena estava munida de uma faca.
- Despoja-te de tuas roupas - exclamou ela, a falar em voz alta. - Agora!
Trêmulo, Arnaldo desnudou-se, completamente bêbado.
Helena, em dois furtivos golpes, desferiu o facão contra o sexo do marido. O saco escrotal e o pênis voaram longe. O homem, a perder muito sangue, logo pôs-se de joelhos e caiu sobre a própria sangria. Com a hemorragia, Arnaldo morrera ali mesmo.
A única reação de Helena fora sentar-se ao sofá, acender um cigarro - algo que não fazia havia anos - e assistir ao corpo ensanguentado do marido longe de seu sexo - que repousava em algum rincão da sala de estar.