Ziguezagueando 34
Chegou mais cedo que noutros dias, três da tarde. Oito da noite de sexta feira, era a hora comumente delimitada da chegada de Hugo na casa do casal no litoral.
Nos últimos tempos, tinha diminuído o intervalo de retorno, de quinze, o espaço para a ausência, passou a dez dias. Às vezes, até menos, ficava quatro, cinco dias corridos com Jovita, e partia.
Jovita respeitava e aceitava com regozijo a diminuição para retorno de Hugo, até porquê, para ela era ganho, o espaço na cama quando das ausências de Hugo, estava lhe incomodando por demais.
Era três horas da tarde, deixou a mala na suíte máster, retornou à cozinha, Jovita preparava bolinhos de chuva, estava terminando.
Sentou junto a pequena mesa, próximo a pia donde ela estava.
De costas, Jovita ouviu um suspiro profundo de Hugo, pelo respirar, pressentiu que queria falar algo. Adiantou:
___ O que te amofina, Hugo?
Hugo sempre foi objetivo no emocional com Jovita, não tinha melindres, tato para o expressar, era direto e natural, falava conforme o pensamento chegava a mente. Sem pestanejar, respondeu:
___ Senta em meu colo. Venha aqui, menina!
Jovita deu uma risadinha, daquelas das antigas, demonstrando felicidade, afinal, sentar-se no colo daquele afrodescendente, gigante em lindeza e masculinidade, era sorte, muita sorte! Secou as mãos no avental. Deu meia volta, e acomodou-se como criança no colo de Hugo.
Ele a acolheu como quem busca proteger gente inocente. Cheirou o pescoço dela, indicava necessitar disto, cheirá-la, tocá-la, buscava com as mãos trêmulas da idade, um pouco de si, que somente era encontrado quando estava junto da amada. Passou acarinhar o rosto envelhecido de Jovita.
Ela, toda solta, sempre pronta para, em condições de, disposta desde a primeira vez para o atender a um simples pedido de Hugo.
Não assustou. Nunca resistiu ao seu chamado, era algo automático, não refletia primeiro, estudando o que fazer, agia, cumpria o que aquele homem punha a frente para ela fazer.
Olhava no infinito dos olhos de Jovita, Hugo passou pacificá-los por antecipação, levando pelas mãos no corpo da companheira, paz, amor, completude, gratidão.
Os olhos de Jovita, principalmente quando sorria, de apequenados, com a idade passou ser dois risquinhos cheios de pelos, quase invisíveis, quando olhados de longe. A cor ruiva do cabelo, dos cílios e sobrancelhas, foram ficando de uma cor pastel, quase branca.
As sardinhas, que eram poucas, resumidas somente na altura do busto, com o envelhecimento, começaram aparecer na pele da mão, do rosto e do pescoço de Jovita, deixando sua brancura um pouco chuviscada, sem ter desaparecido a mulher que habitava dentro, reluzia agora de uma beleza que havia transcendido os limites, parecendo ser detentora de uma liberdade sem limites, desafeta da obra do corpo.
Hugo interrompeu o silêncio. Jovita pedia fala pelos olhos. Afinal! Pensava, o que era tanta acolhida, aconchego naquelas horas do dia!
Hugo começou a fala de forma sussurrada, querendo ser entendido no mais profundo sentido e alcance. Esta era a hora decisiva de se revelar para ela, desaguar do rio, retornando no oceano, que um dia foi morador. Passou dizer:
___ Tenho vivido para tatear a mente humana, lido, relido mentes e livros, angariado saberes de tudo quanté fonte, bebido da agua da sabedoria, da ciência, da metafísica, da religião, do mundo das artes, falada, escrita e desenhada, buscado nos sons do mundo, o alimento que pudesse acalentar minhas entranhas, da fatiga de ser este feito para não ser reconhecido por eu mesmo.
Continuou:
Jovita, naquela história que se iniciou com nosso grude naquela laranja, foi o que precisava para não resumir eu e minha existência numa tremenda piada de mal gosto, aquela que imaginado ter sido criada por um mágico sarcástico, que brinca de fazer coisas belas e feias, para depois descartá-las.
Quando mantive um relacionamento com a primeira mulher, não estava a altura de ser o par dela para uma vida amorosa, era indigno de mim mesmo, por isto, acredito, que ao invés de botar sal em carne podre, foi solução dela sair daquela vida, inóspita, sem um personagem.
Não abro do direito da privacidade última para ninguém, vivi escorregando do mundo, das pessoas, queria me manter na indiferença, para não ser o provocador da condução ao vazio de mais gente, quando em contato com o subjetivo solitário que escolhi como vida própria.
Jovita percebeu que a conversa era longa, delicada para estar tão descansada de corpo, precisava de prumo, visão, panorâmica.
Levantou do colo de Hugo, arrumou os cabelos, que estavam presos num Coque baixo. Arredou uma cadeira, bem a frente do companheiro; passou fitá-lo sem permitir espaços para distração.