O instante eterno [conto]
O sofá é velho, um verde musgo rasgado com detalhes sujos em preto, mas o resto da sala é limpinha, com mesa, cadeira e estante, sem obstáculos, e o tempo anda para cá e para lá no raio de dois passos, indo e vindo num ritmo que poderia se perpetuar enquanto durasse o pensamento, uma resposta, a salvação, os números da loteria e J. sair do quarto ou E. entrar dentro de onde não tinha barulho de nada e a maçaneta não girava mesmo com a porta aberta e sem as chaves que já tinham se escondido há muito por qualquer ser com competência suficiente para girar uma maçaneta e desafiar o inanimado desconhecido ou sair sem se preocupar com rastros, vestígios e memórias, só levar um pouco de esperança e deixar alguma saudade com uma pitada de complacência, ou o contrário, sem ser ou estar, olhando a luz que ignorava as barreiras pelo buraco da fechadura e entrava, o vento entrava, a poeira entrava, e só a porta permanece num estado de inércia que inspira o cigarro a continuar enquanto tudo persiste no seu lugar queimando em fogo baixo, elegantemente borbulhando sob o controle da estética paz harmônica entre o quente e o frio, paramentados com casacos, cachecóis e chapéus, perfeitamente preparados para qualquer nenhuma ocasião, onde sorrisos, beijos e abraços são distribuídos como santinhos de promessas do fim da guerra do fundo do âmago, o massacre de todos os urubus e o renascimento da era das borboletas que plainam em verdes amarelados campos de girassóis espalhando girolipos que se abastecem na lã do ritmo dos passos para transpassar o desenho da chave na porta e acender o cigarro que nunca se apaga agarrado no fio de cabelo que segura a bigorna da vida, aquela coisa que acontece entre um piscar e outro e imperceptível a olho nu, sem valor tangível, que ninguém vê passar mas passa, a todo momento, enquanto J. está no quarto e E. está fora, sem sorrisos, beijos e abraços e promessas, imoralmente condescendentes com si próprios e o implacável destino fruto da ebulição de acontecimentos efêmeros e significativos quando contextualizados no universo dos sonhos sonhados numa noite de verão, onde o inevitável explode no aroma inebriante do vinho e cloreto de sódio, abalando as estruturas gravitacionais da razão em nome do instinto de sobrevivência e impulso biológico do domínio e controle da vontade animal de ser, pertencer, estar, cambaleante entre o aceitar e negar, livre de qualquer jugo que não o da consciência de que acertos são feitos de erros que jamais condenam, mas acendem as chamas do recomeçar, insistir em continuar num estado de catatonia que tende a se eternizar no ciclo das estações, infinito, glorioso e natural, seguindo sempre pelo mesmo processo de nascer e se destruir na caça da vitória perfeita ou impulsionadora motivação de se completar, preencher o espaço do vazio, ocupar o lugar de agente solidificador do pulso que emancipa a existência do par de almas que aprisiona o prazer e condena a vontade, numa pungente violação das fronteiras do outro pelas forças ocultas da tradição do bem o do mal, que não se equilibram numa balança viciada, mas correm em paralelos que se cruzam graças às possibilidades abertas pela dialética do sim e do não, obliterando qualquer movimento brusco que não simbolize a razão concretizada pela lógica causa e consequência, dura como a verdade que não existe afora a materialização de devaneios cerebrais que desencadeiam uma sequência de decisões que não mais se complementam, mas complementam o outro, aquela imagem formada a partir do interstício de duas buscas pelos mesmo fim: a completa satisfação
a porta se abre e a sombra do corpo se coloca frente a luz
- Estou grávida.