Tolerância em ruínas
Alguns já olhavam torto para a criança curiosa. Outros diziam que nada entendia por ser apenas uma criança. Afinal, no mundo adulto, atirar pedras é algo lógico, justo, necessário e moralmente correto. Havia algumas crianças, ensinadas por seus pais e outros adultos, que já atiravam bem suas primeiras pedrinhas.
E pedra não faltava na cidade. A montanha de pedras se agigantava mais e mais, mesmo com o grande e constante uso delas.
- Por que vocês usam tantas pedras? Por que atiram tantas pedras uns nos outros?
A criança era muito chata. Por que, simplesmente, não pegava suas pedrinhas e as atirava nos outros como todos faziam? Insuportável essa criança! Culpa dos pais que não a ensinavam o certo.
As pedras, em sua maior parte, eram feitas de palavras. Muitos preferiam lança-las com os tais estilingues das redes sociais. Dava impressão de maior segurança. Funcionavam como escudos.
Na cidade, as pessoas não eram mais pessoas: eram apenas erros. Só eram vistas quando erravam. Quando acertavam, ficavam apagadas. Quando erravam, eram bem percebidas. Ficavam expostas às pedras. Se não havia erros, eram criados.
Uma ligeira conversa antes das pedradas chamou atenção da criança.
- Não fiz isso! – defendeu-se alguém prestes a ser apedrejado.
- Mas o tio do amigo de seu irmão fez.
- Não tenho irmãos.
- Então foi o tio do irmão de seu amigo.
- Pode ser, mas não me lembro.
- Foi há muitos anos, mas isso não importa – disse o atirador, enquanto finalizava a conversa com a sentença das pedras.
A criança se assustou. Não entendia o porquê de tanto prazer de quem atirava as pedras. Decidiu, então, oferecer uma balança às pessoas. Coisa sem sentido, coisa de criança. Um homem, por curiosidade, perguntou:
- Por que dessa balança?
- Porque sim – limitou-se a responder, infantilmente, a criança. Era muito óbvio: a balança mede os erros e os acertos; mede quem atira e quem recebe as pedras.
- Vocês querem espelho? – apresentou nova opção aquela criança chata.
Ninguém respondia.
- De onde vêm tantas pedras? – questionou.
- De onde vêm tantas pedras? – insistiu a criança impertinente, que já, já levaria algumas pedradas.
Um velho, que já atirou muitas pedras durante sua vida, e não via mais sentido nisso, sentou-se do lado da criança.
- Quer saber de onde vêm as pedras?
- Sim.
- Está vendo aquele castelo em ruínas?
A criança fez “sim” com a cabeça.
- As pedras são tiradas de lá e jogadas nesse monte.
A criança, que estava aprendendo a ler, silabou “e-rân-cia”. E quis saber:
- Por que está escrito “erância” naquele castelo?
- Estava escrito “tolerância”. Mas quase ninguém se lembra disso. É uma palavra em desuso.
A criança pensou, pensou e sorriu. Concluiu com um fio de esperança:
- Então, quando acabar, de vez, aquele castelo, não haverá mais pedras para as pessoas atirarem umas nas outras.
O velho, mais calejado da vida, apresentou outro cenário à criança, um cenário assustador.
- Na verdade, enquanto a tolerância não é totalmente destruída, ainda há alguma esperança. Mas, sem nenhuma tolerância, as pedras não terão mais utilidade. Já terão cumprido seu propósito.