SEM O MEU CABELEIREIRO
Conto de Gustavo do Carmo
Zuleide só cortava o cabelo com o Fred. Só ele sabia aparar as suas pontas e não deixar as madeixas armarem. Somente o Fred podia pintar, alisar e fazer a escova. Além de tudo, era o seu único confidente. Só aceitava conselhos pessoais dele.
Quando chegava ao salão, os outros cabeleireiros a assediavam como abelhas, mas Zuleide só aceitava o Fred. Marcava horário somente com o Fred. Se ele atrasava, esperava. Quando não podia aparecer, voltava para casa (frustrada) e agendava um outro dia. Só fazia as unhas ou a depilação depois do corte pronto, pois tinha medo de perder a vez, já que o seu trabalho era muito concorrido. Fred atendia Zuleide em seu salão na Avenida Nossa Senhora de Copacabana.
Fred era um homem moreno, alto e forte. Pele e barba lisa como bunda de neném. Cabelos bem aparados. Casado, tinha três filhos. De origem humilde, foi procurar emprego em um pequeno salão no Engenho de Dentro, que pertencia a duas irmãs.
Estava desempregado, prestes a ser despejado com a mulher e os ainda dois filhos pequenos. Pediu um emprego para varrer o chão do salão. Ao ser flagrado cortando perfeitamente o próprio cabelo em um dos intervalos do serviço, ganhou uma oportunidade para cuidar do cabelo de uma cliente - amiga das patroas - que serviu de cobaia. O corte chanel ficou perfeito. A mulher não só tornou-se fiel como recomendou os serviços de Frederico para as amigas, entre elas, Zuleide. Frederico foi promovido a cabeleireiro e passou a ser apelidado pelas donas e as clientes de Fred. Fez vários cursos na área de estética e beleza para se aperfeiçoar e regularizar a sua nova profissão.
Zuleide morava no Engenho de Dentro. Era uma moça muito bonita, morena como Fred, que tinha cabelos cacheados antes de alisá-los com o seu cabeleireiro preferido. Publicitária, também foi promovida a diretora, o salário aumentou e ela se mudou para Ipanema. Apesar disso, manteve-se fiel ao trabalho de Fred. Aparecia toda a semana com o seu carro luxuoso na porta do salão no bairro do subúrbio.
A violência da cidade aumentou. O trabalho de Zuleide também. Tornou-se difícil para ela manter a fidelidade a Fred. Depois de um assalto que sofreu ao voltar do salão onde o amigo trabalhava, Zuleide ficou com medo de aparecer no Engenho de Dentro com o seu carro importado zero-quilômetro. Tratou de arrumar um emprego para ele em uma rede de salões de beleza em Copacabana, onde podia ir a pé.
Com muita tristeza, Fred deixou as antigas patroas, que se transformaram na mãe que ele perdeu cedo. Em cinco anos, Fred se destacou no novo local de trabalho e conquistou também a clientela de artistas e profissionais liberais renomados. Ganhou prêmios e muito dinheiro. Ficou rico.
Abriu o seu próprio salão de estética e beleza. O negócio prosperou. Tornou-se concorrido. Zuleide, claro, foi a sua primeira cliente. Porém, teve que se conformar em ser obrigada a marcar hora com o amigo, pela primeira vez. A moça ficou chateada no início, mas depois aceitou. Mas passou a ter ciúmes do cabeleireiro com outras clientes. A esposa também. Manicure do salão, cismou que o marido a estava traindo com Zuleide quando o via conversando alegremente com a cliente. Só tirou a idéia da cabeça, por um tempo, quando foi surpreendida com um jantar romântico e uma lingerie. Engravidou do terceiro filho.
Já Zuleide era tão obcecada pelo tratamento capilar de Fred que tinha pavor só de pensar na morte dele. Chegou até comentar durante uma sessão de pintura:
— Ai, Fred. Se você morrer eu nunca mais cortarei o cabelo na minha vida.
— Ih, deixa de bobagem, Zu. Eu tenho tantos cabeleireiros talentosos. Se você quiser eu te indico o René.
— Não. Só aceito cortar o cabelo com você. Se acontecer o pior, aí sim eu aceito a sua sugestão.
— Xi, vamos mudar de assunto? Detesto falar em morte.
Aconteceu o que Zuleide mais temia. Fred foi alvejado por seis tiros no peito, caindo inerte no asfalto frio pelo sereno das onze da noite. Saía do salão após um dia movimentado de trabalho e lucro. Estava se dirigindo para o apartamento onde morava na Constante Ramos quando sentiu o primeiro estampido quente em seu peito, vindo de alguém que havia tocado as suas costas. A féria do dia foi roubada.
O salão amanheceu aberto, mas sem atendimento. Apenas para os funcionários desolados comunicarem o triste acontecimento às clientes. Zuleide se desesperou. Fez questão de ir ao velório e ao enterro do cabeleireiro fiel e amigo. Comportou-se como a viúva. Chorou abraçada ao caixão. Fez escândalo. Assustou até as antigas patroas de Fred, que já estavam bem velhinhas. A verdadeira viúva aceitou, contrariada, as condolências dadas por Zuleide. Os dois filhos mais velhos de Fred estavam inconsoláveis. Os meninos começavam a trabalhar com o pai. O rapaz, como cabeleireiro e a moça como atendente. O menino mais novo não estava presente na capela. Ficou brincando na casa da avó materna, sem saber que vai crescer órfão.
Zuleide passou um mês de luto. Mandou até tingir algumas roupas de preto. Assim ia para o salão do amigo falecido e cortava o cabelo com René, um jovem humilde que teve a mesma trajetória de Fred, a quem também pediu um emprego. Mas René não conseguiu agradar a Zuleide, que detestou o seu trabalho e dos outros nove cabeleireiros do Freds Coiffeur.
Mudou de salão. Tentou cortar em Ipanema. Em um shopping da Barra, outro de Botafogo. Até na zona norte. Voltou a cortar no salão das ex-patroas de Fred, no Engenho de Dentro, já sob nova direção. Não se acertou com nenhum.
A polícia suspeitou de assalto, da viúva por causa de ciúmes e de René, homossexual apaixonado pelo patrão. Todos provaram inocência. As investigações chegaram até Zuleide, através da denúncia feita por René que, indignado pela humilhação que levou da nova cliente, se vingou, contando, em depoimento, o comportamento exagerado da antiga cliente no velório. Também acharam as suas digitais na pistola com silenciador. Zuleide confessou tudo.
Matou porque descobriu que Fred desmarcou um horário com ela só para atender a sua ex-melhor amiga, que lhe roubou o seu noivo, único homem por quem se apaixonou.