1051-O DENTE

Domingo de Páscoa, a família reunida à mesa do almoço, em grande confraternização. A bacalhoada estava excelente, acompanhada por um bom vinho branco, tudo correndo à perfeição.

Como sobremesa foram servidos bombons variados, dinamarqueses ou holandeses, já nem me lembro. Escolhi um tablete de chocolate meio amargo, compacto, só chocolate.

Duríssimo. Ao tentar separar com os dentes um pedaço do tablete, sinto um dente quebrar-se. Um incisivo lateral superior, justamente um que havia sofrido um processo de branqueamento há alguns meses, quebrou rente á gengiva.

Protegendo a boca com a mão, saí da mesa e fui ao banheiro. Fechei a porta e olhei no espelho o estrago: uma janela na parte superior dos dentes, coisa de filme de terror.

Não havia sangramento. Lavei a boa e tentei recolocar o dente, uma tentativa desesperadora e inócua. Mas, como que por milagre, o dente se ajustou entre os dois laterais e ali ficou preso.

Voltei à mesa e permaneci de boa fechada, enquanto a conversa decorria animada. Disse apenas alguns monossílabos, evitando abrir a boca; mas percebi que o dente permanecia firme.

Embora sendo domingo, telefonei mais tarde à dentista da qual sou cliente e ela, solicitamente me ouviu e marcou hora, no dia seguinte, para ver o que poderia ser feito.

À noitinha, fui à missa com minha esposa. O dente não me incomodava. Mas vocês sabem como é quando a gente tem qualquer problema na boca: sem querer, a língua vai passando por ali por vezes e vezes, sem mesmo que a gente perceba. Alheia à nossa vontade. É como se ela tivesse inteligência própria e desejasse se livrar do incomodo bucal.

Pois foi assim que a situação piorou sobremaneira: ao abraçar o fiel estava ao meu lado, e murmurando as palavras do momento – “a paz seja contigo” – o dente sai da fixação precária e cai no chão!

No piso de mármore, o dente salta ao cair, desaparecendo por entre os bancos. Bem que tentei, discretamente, encontrá-lo. Mas como? Além do salto para o desconhecido, a cor do dente se confundia com o próprio mármore.

Não pude sorrir mais naquela noite de domingo, nem falar direito a “boa noite, querida”, para minha esposa, ao nos deitarmos.

Bem, dia seguinte, de manhã, lá estava eu no consultório da doutora dentista. Meio sem jeito contei-lhe como havia perdido o dente na igreja. Para meu espanto, ela deu uma boa risada, dizendo:

— Você imagina a faxineira da igreja, agora de manhã, ao varrer o chão e encontrar um dente!

— Com certeza, ela vai entregar ao vigário achando graça do achado.

— E o vigário irá anunciar nas missas do próximo domingo...

— Cruzes! Nem pensar! — exclamei, abrindo a boa para ela iniciar o trabalho.

Pois não foi diferente do presságio da dentista. Na missa do domingo seguinte, antes da benção final, o pároco disse, tentando esconder o sorriso:

— Caros fiéis, encontra-se na sacristia um dente, achado entre os bancos do templo. O fiel que perdeu o dente pode procurá-lo.

Embora ninguém soubesse, senti como se todos os olhares dos irmãos e irmãs se fixavam em mim. Corei de vergonha, como se ele, padre, tivesse dito meu nome, endereço e telefone.

Agora estou pensando quanto tempo irá ficar aquele dente na sacristia, antes de ser jogado no lixo.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 21 de abril de 2018

Conto # 1051 da série INFINITAS HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 26/06/2018
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