AS CINZAS DA QUARTA-FEIRA

Acorda, querido, já é meio-dia. Essas palavras foram ditas e ouvidas em quase todas as casas do Rio de Janeiro na quarta-feira de cinzas, o que não é de causar espanto, todo ano a mesma coisa, quatro dias crepitando nas chamas do carnaval, e o quinto, exaurido, transformado em cinzas, daí o nome do dia. Estranho foi Ana Tereza também dizê-las para Frederico, acorda, inclusive o querido, sem trazer nas mãos arma de fogo ou rolo de pastel, mesmo não tendo o marido voltado para casa desde a sexta-feira, onde você esteve, pensou, mas seria por curiosidade, pois Ana Tereza bem sabia onde o marido estivera, e, sem querer ouvir uma mentira, ficou no já é meio-dia.

O sábado nasceu chuvoso, esqueceu-se o sol de aparecer no carnaval, esperto ele, viajou para longe, onde o barulho é pouco e o feriado mais de repouso que festa. Ana Tereza se levantou cedo, abriu a cortina, o céu se desmanchava em água, e imaginou o sol com óculos escuros sobre o nariz e um sorriso na boca, como era costume Gustavo desenhar. Frederico já se levantara, deve estar fazendo o café, não estava, foi comprar o jornal, e não voltava, foi almoçar com os primos, mas por que não avisou, e a tarde mastigou a manhã, e a noite engoliu a tarde, e nada de o marido chegar. Cansada de esperar, preocupada, ligou para os filhos, e como Pedro ou Janaína não atendessem, ninguém ouve o telefone no baile, vestiu ela própria a fantasia. De sapato, vestido e chapéu pretos, como o luto presumido a obrigava, dirigiu-se, na contramão de pierrôs e colombinas, primeira à esquerda, segunda à direita, três quarteirões à frente, para a delegacia. O que houve, perguntou-lhe o escrivão, os olhos fundos de tanto plantão e a voz rouca de tanto cigarro, ao que prontamente ela esclareceu, meu marido sumiu. Nunca um crime de verdade viu surgir de pronto aquela quantidade de policiais, só para rir da cara da senhora, sim, sumiu, ele e todos os maridos da cidade, foram abduzidos por loiras com vinte anos de idade e peitos de dois meses, e vá saber se são loiras ou loiros, arrisca só descobrir depois do carnaval. Entenda-me, cabo Nogueira, ela lera nome e patente no bordado do uniforme, estamos casados há cinquenta anos e isso nunca aconteceu, Frederico não gosta de carnaval, nem teria saúde para aguentar um baile, depois de duas pontes de safena e uma prótese de joelho.

Com a queixa registrada, ainda que diante da pilhéria dos policiais, Ana Tereza voltou para casa, triste e sozinha, sentindo-se viúva, para isso faltando apenas um corpo e a declaração de óbito.

Os filhos foram consolar a mãe no domingo, vamos assar uma carne, não, vamos passear no shopping, não, vamos à praia, com esse tempo, então, pior ainda, a qualquer sugestão de Janaína ou Pedro a resposta era sempre o mesmo não, mas a senhora precisa se distrair, mamãe. À tarde chegaram os netos, e um esboço de sorriso se deixou surgir ao ver Guilherme, Marcela e Tereza, e mais Gustavo, o tal bisneto, que, mal chegou, pegou papel e lápis de cor e desenhou o sol com a cara e o bigode do vovô; mas logo o sorriso se pôs no horizonte, ao se lembrar que sem o velho não podia dizer que a família estava completa.

Querendo ou não, estando só ou acompanhado, o tempo passa, e meio sem saber como ou por quê a segunda e a terça-feira passaram para Ana Tereza, os dois primeiros dias de um resto desmotivado de vida, entre a cama e o sofá, entre lembranças do que foi e do que poderia ter sido. Mas à noite a sorte pareceu mudar de lado com a ligação de Guilherme, oi, meu neto, como vai?, e sem tempo para mais delongas ele foi direto ao assunto, o vovô já voltou para casa?, não?, então é o próprio.

Vovô Frederico se divertia com as mãos ocupadas, uma mulata seminua de um lado e uma garrafa de cerveja do outro, e sua única preocupação parecia ser a qual dar atenção primeiro. Graças a Deus, exclamou vovó Ana Tereza, e Guilherme não entendeu a expressão de alívio, esperava raiva ou asco, graças a Deus, sim, ela se explicou, pelo menos ele está vivo. Vou lá tirar satisfações, cresceu em macheza o neto, não, por favor, deixa estar. Guilherme continuou sem entender, por que não?, queria mesmo saber, por ele próprio mais do que pela avó, o que um velho, adjetivo esse mais incisivo que faca afiada, o que um velho casado fazia em um lugar como aquele enquanto a esposa se remoia em viuvez.

Embora tomasse as dores da avó, Guilherme fez como ela lhe pediu, mas não perdeu Frederico de vista. Até o sobrinho Gustavo reconheceria aquele bigode, mas estranharia o figurino, sandálias de dedo, short púrpura, camiseta branca e um esplendor equilibrado nas hérnias de disco, sabe-se lá onde arrumou esses trajes, melhor não saber. O avô ainda beijou mais três mulheres, seu bom gosto pelo menos ainda estava preservado, todas aprovadíssimas, não fosse pelo que o ato significava, até desaparecer no meio da multidão.

Acorda, querido, já é meio-dia. Na quarta-feira de cinzas, finalmente, Frederico reapareceu de madrugada, deitou-se na cama como se nada tivesse acontecido, como se fosse sexta-feira a véspera, e, dormiu ao lado de Ana Tereza. Vamos, deixa de preguiça, levanta, chamou-o de novo, e o marido nada de acordar. Às vezes é preciso cinquenta anos de casamento para descobrir junto a quem se está dormindo. Pálido, frio, a respiração lhe faltava. A primeira reação foi ligar para a polícia, mas isso daria margem para o cabo Nogueira e seus colegas rirem ainda mais, eu bem disse à senhora. Discou, em vez, para o médico, esperou um toque, cheiro de perfume barato e suor na camisa, dois toques, o short sujo de maquiagem, três toques e desligou. No bolso, uma caixa de Viagra e um comprimido a menos, ele sabia que não podia.