Uma canção para Deus

O jovem circulava por cidades à procura de alimento, abrigo e segurança. Conseguia o mínimo para sobreviver. O alcoolismo, que o afastou da família e o fez sair de casa, agravava-se. Magro e pálido, quem visse aquele rapaz meses antes jamais o reconheceria hoje: barbudo e esquelético, era o estereótipo do viciado urbano. A família evitava falar dele. O Jovem, por sua vez, esquivava-se qualquer contato com seus parentes. Envergonhado, deixou sua cidade e resolveu perambular pelos grandes centros urbanos em busca de liberdade. Na verdade, o vício o levou embora. Nos lugares em que passara, verdadeiras metrópoles, cediam-lhe apenas abrigo, em outros somente restos de comida. Sempre faltava algo. Nas últimas cidades em que esteve, era um verdadeiro espírito para os transeuntes e às autoridades. Ninguém o percebia. Não conseguia um centavo. Pensou em desistir da vida, mas sua fraqueza(ou fortaleza) de espirito não o permitiu. Certa noite, deitado ao relento na porta de uma luxuosa igreja, viu a carteira de uma senhora cair no chão. Ele pegou o objeto e o devolveu à dona, mas sem antes tirar um certa quantia, ínfima. A senhora agradeceu o gesto e, após conferir o dinheiro, disse:

- Desses três mil reais, você retirou apenas cinco ?

- Sim. É um pouco acima do valor do metrô. Amanhã estarei indo aonde ele me levar . Seja aonde for. Levo e carrego comigo todas as partes do mundo. Sempre gostei dos limites. Dizem que a última parada é a de um bairro pobre, cheio de gente ignorante, humilde e distante de tudo que tem por essas grandes cidades por onde perambulei. Quero desbravar novos mundos, horizontes diversos, conhecer outras paisagens, culturas diferentes e outras pessoas. Talvez eu enfrente e vença toda a sujeira que corrói minha alma, meu corpo e aqueles que estão ao meu redor.

- Tem quantos anos meu jovem? pergunta a senhora.

- Vinte sete.

- Há quanto tempo mora nas ruas?

- Quatro.

- Nunca se culpe pelos vermes e a sujeira que corroem seu corpo e sua mente. Você já nasceu com essa doença. Mas não se preocupe, o tempo fará seu papel e tudo ficará bem. Eu não posso fazer nada.

- Obrigado pelas palavras de apoio.

- Garoto, vou lhe dizer uma coisa: Você é um visionário. Um sonhador. Mas, de certo modo, realista. Vencerá. Infelizmente, não posso dar mais que três reais pelo seu gesto caridoso. Nossa arrecadação caiu muito com a crise. Com esse dinheiro mal pago minhas despesas.

- Obrigado. Três é um número mágico, místico. Gostei. Somam 9 no total, com os cinco que peguei de sua carteira somado ao real que achei na rua

- Foi um prazer, jovem. Hora de voltar ao meu carma diário.

- Qual?

- Trabalhar ao dia em uma cidade e voltar à noite, para outra.

- Vai de metrô?

- Não. De ônibus. Na verdade, bairros não dormem. Eles não tem o luxo

de que seus habitantes usufruem.

- Como se chama, Senhora?

- Paula Jéssica.

- E me desculpe perguntar, quantos anos tem? vejo que ainda é muito jovem, porém desculpe a sinceridade. Aparenta ser um pouco mais velha.

- Tenho 31 anos, mas meus responsáveis me maltrataram tão mal ao longo desse tempo que comprometeram minha estética. Mas estou me cuidando por conta própria.

- Tem filhos?

- Três: Januário, Jeremias e Jioconda. Jiocanda com J, não com G. Erro do Cartório, mas não fiz questão de corrigir.

O Jovem volta a dormir. Jéssica pega seu ônibus.

Continua depois.