MARTÍRIO
Fora batizada Benedita, pois sua mãe, dona Albertina, mulher honrosa e de fé inabalável, acreditava que o nome atribuía à filha proteção celestial, podendo, assim, ser agraciada com a infinita bondade divina. Era a caçula de cinco irmãos e cresceu dentro dos preceitos religiosos cristãos, que a mãe tão fervorosamente lhe instruía. Moravam numa casa de taipo de três cômodos, lá pelos lados do sertão central do Ceará. Para sustentar a família o pai se desdobrava entre o pequeno lote de plantio e da pesca de alguns peixes nas épocas de cheia. Não tinham muito, mas eram gratos pelo pouco que lhes chegavam. Todas as noites, pais e filhos, ajoelhavam-se diante da imagem da Virgem Maria e rezavam juntos para agradecer as parcas bênçãos recebidas. Aos domingos, a família temente a Deus, ia junta à igreja concluir o ritual de gratulação.
– Mamãe, é verdade que se agradecermos ao Senhor por cada dia vivido, sem lamuriar, seremos cada vez mais protegidos e bem-aventurados? – Perguntava um dos filhos mais velhos.
– Sim, meu filho. Devemos sempre agradecer, mesmo que o pouco que nos chegue mal dê para saciar a fome. O pouco, com Deus, é muito. Já dizia a minha avó. Deus olha para quem agradece, obedece e não murmura. – Respondia a mãe, ainda jovem, mas já com um olhar cansado e um leve sorriso nos lábios.
Benedita, naquele momento criança de colo, ouvia as palavras da mãe com o dedo na boca, sem entender quase nada, mas sorrindo com um vivo olhar condescendente.
A vida daquela gente começou a desmoronar quando perderam o seu provedor, seu Genivaldo. Encontraram-no boiando às margens de um pequeno riacho da região. Nunca se soube ao certo o que acontecera. Além de lidar com a terra, em tempos de chuva e de abundância, o homem era pescador dos bons e sabia nadar como ninguém. Houve muito choro e lamentação, queriam entender o porquê daquela desgraça na família, mas não havia respostas. Resignaram-se.
Dona Albertina tentou manter a fé, mas sentia-se desesperada. Perder o companheiro de tantos anos já era uma dor imensurável, para mais, ainda tinha cinco bocas famintas para alimentar. Os meninos ainda eram muito novos para a lida no campo e ela não daria conta sozinha. Chorou desesperadamente durante dias seguidos, tentando encontrar uma solução prudente. Benedita a observava com olhos lacrimejantes tentando, em vão, entender tudo o que estava acontecendo. A mulher, sem saída e desamparada, aceitou, depois de muita insistência, casar-se novamente com um solitário viúvo daquelas paragens, que há tempos lhe cobiçava com olhares maliciosos.
O tempo passou depressa e a pequena Benedita, agora com dez anos de idade, sentia-se confusa e não entendia bem as intenções do seu padrasto; Sempre que a mãe saía, ele pedia que a menina fosse para tina banhar-se.
– Cuida, Benedita, tá na hora do teu banho. Tira a roupa e mete-se nessa tina. Estás tão suja que nem um porco consegue ficar perto de ti. Uma boa menina deve manter-se limpa. Até parece que tua mãe nunca ensinaste nada a ti. – esbravejava o homem com voz de trovão.
– Mas padrinho, eu não estou suja. Nem sentei no chão hoje, nem o dia está tão quente para que o suor escorra. – Contestava a menina.
– Ora, não discuta, sua malcriada. Se eu estou dizendo que está é porque está. Obedeça!
E ficava observando-a com um olhar misterioso. Algumas vezes tocava a menina de um jeito que a deixava constrangida, com o pretexto de lhe esfregar o corpo para tirar a sujeira acumulada. Enquanto suas grossas mãos percorriam o corpo da criança, o homem tentava controlar os seus instintos mais primitivos. Ela, entretanto, era proibida de comentar qualquer coisa com a mãe ou com os irmãos.
Aos poucos, Benedita foi emudecendo. A mãe percebera seu olhar tristonho, a cabeça baixa e o encolhimento de ombros toda vez que o padrasto aproximava-se. Ignorou e agarrou-se ao terço.
Aos doze anos já era quase moça formosa e despontava os pequenos botões dos seios. O padrasto ainda insistia nos banhos. Não mais lhe tocava, mas estava sempre à espreita. Gostava de vê-la nua em pelo, lambia os beiços ao observá-la. Benedita, acuada, sentindo medo e constrangimento, apenas consentia. A menina, que um dia fora doce e alegre, assemelhava-se agora a um cordeirinho manso e assustado.
Numa noite de domingo, logo após ter completado quatorze anos, Benedita achou por bem não ir à missa com a mãe e os irmãos, pois se recuperava um resfriado e sentia um pouco de dor de cabeça e o corpo febril. Foi, entretanto, pega desprevenida pelo padrasto bêbado, que se lançou sobre ela com ferocidade animalesca. Ele rasgou-lhe o vestido e a carne, penetrando-a com violenta satisfação e com a boca salivando de prazer insano. Após uma desgastante luta desleal, Benedita conseguiu desvencilhar-se do corpo fétido, suado e asqueroso do seu algoz, correndo mata adentro pelo sertão desértico.
A escuridão daquela noite sem estrelas escondia a vergonha e o asco que sentia de si mesma. Suas roupas retalhadas combinavam com a sua alma estilhaçada e ultrajada. Correu desesperadamente o mais depressa que pode, para longe daquele lugar de imundície, na esperança de que a dor que lhe assolava o coração não mais lhe acompanhasse. Foi vencida, porém, pelo cansaço e pelo corpo mazelado.
Caiu nas areias secas do sertão e inundou-as com suas lágrimas atormentadas pelo sofrimento. Preás, pebas e calangos assustaram-se com seus soluços lamuriantes. Uma rasga-mortalha alçou um voo rasante, soltando um piado tenebroso, como se sentisse dentro de si a desgraça da pobre menina desonrada.
De repente, silêncio. Ergueu o corpo ferido e, cambaleante, ajeitou os restos do vestido florido manchado de sangue. Com passos trôpegos, humilhada e solitária, segurou o choro e rumou para casa com dificuldade. Apenas ela e o vento frio sertanejo que sibilava baixinho.
No caminho de volta, olhou com desdém para a pequena capela da qual recebera os ensinamentos de fé ao lado da família. Onde estava Deus e a sua benevolência? Onde estavam as graças que o seu nome prometia? De que serviram todos os anos de reza e servidão? Uma lembrança longínqua invadiu a sua mente: “Deus olha para quem agradece, obedece e não murmura”.
– Deus... O que Deus fez por mim esses anos todos? – Perguntou-se baixinho em tom de ironia.
Sentia-se, agora, sem vida como os arbustos em tempos de seca. Sabia que ainda teria de conviver durante muito tempo com o seu malfeitor e sabia que não podia contar com uma mãe complacente que fazia vista grossa desde a sua mais tenra meninice.
Encontrou a família dormindo ao chegar a casa. Lavou-se com nojo o mais silenciosamente possível e, na ponta dos pés, entrou no quarto, enfiando-se debaixo do lençol surrado. Guardou para si o seu segredo aviltante e dormiu um sono conturbado, sabendo que ali era apenas o início do seu martírio.
Benedita jamais voltou a crer na benevolência humana depois daquela triste noite malfadada.