A última fronteira
Mário era órfão de pai e mãe. Não vivenciou os laços familiares como os seus colegas de escola. Nunca ouviu um: “mamãe te ama”, ou ainda: “durma com os anjos, meu filho”. Também nunca soube o que é “carinho de mãe”. Os valores que ele possui, aprendeu na rua. Se Mário ainda está vivo, deve-se aos cuidados de sua tia adotiva.
Dona Maria é uma daquelas almas caridosas, que cuidam dos filhos dos outros, principalmente dos menores de rua, que não tem para onde ir. – Mário chegou aqui parecendo um bicho, de tão feio que era. Os pais foram assassinados pelo tráfego. Sempre tive muita pena dessa criança. De todos daqui, é pelo Mário que tenho mais carinho. Essa criança já sofreu muito na vida.
Passados os anos, Mário cresceu e tornou-se um adolescente esforçado. Dedicado aos estudos, Mário sonhava ser jogado de futebol. – Isso mesmo meu filho, sonhe sempre. Sonhar diferencia o homem de uma pedra. E você não é uma pedra, você é um ser humano. Eu acredito em você. Você é capaz, e vai conseguir. Mas não largue os estudos, Mário. A escola ainda é a melhor forma de ascensão social, principalmente para filho do pobre – estimulava dona Maria.
Um dia, Mário precisou caminhar por um corredor estreito e longo. No final desse corredor existia uma porta. Era um prédio comercial, muito alto. De modo que não dava para ele ver o chão. As nuvens eram os únicos seres vivos que se viam pelas janelas de vidro fumê, naquele lugar. Mário tentou abrir a porta, para ver o que tinha lá dentro, mas a tentativa foi em vão. Estranhamente, algo que estava por trás daquela porta lhe chamava; algo lhe prendia como um imã. Mário tinha a nítida impressão de que dentro daquela sala existia algo que lhe pertencia. Quanto mais ele caminhava, mais a porta se afastava, num movimento sinistro e avassalador. Como num filme de ação, em que o personagem principal caminha rumo ao horizonte, assim estava ele caminhando sem nunca alcançar a porta. Já bastante cansado e ofegante, ele ouve uma voz: – Por que você não anda mais rápido? – Não consigo – respondeu. Já estou no meu limite físico. – E você acha que ser inteligente é fácil? – disse aquela voz firme e atroadora.
Depois de muito esforço físico, Mário acelerou ainda mais os passos. Aos poucos ele começou a correr. Corria como um atleta. Em ritmo acelerado e com o controle total dos meus músculos, parecia que ia chegar logo naquela porta. O problema foi que quanto mais ele corria mais aquela porta se distanciava dele. Qual não foi a sua surpresa quando ele ouviu pela segunda vez aquela voz? – Você está correndo para o lado errado. – Como assim? – indagou. – Aqui o tempo não é linear, é cíclico – disse a voz!
Foi então que ele percebeu que para entrar naquela porta ele precisava mudar de estratégia. Como num insight, ele começou a usar mais à cabeça, o cérebro, e menos o corpo físico. Parou, respirou fundo... Aos poucos os movimentos físicos deram lugar ao pensamento, e Mário começou a usar os músculos do cérebro em vez de usar apenas os músculos físicos. Aos poucos...
Sentindo-se num beco sem saída, Mário não demorou a perceber que tudo naquele lugar estava ligado com tudo; que nada ali era separado. Aos poucos, pela observação e pela intuição, Mário descobriu que à realização de uma meta está atrelada ao número de esforços que se faz para atingi-la; que cada coisa que existe no universo tem o seu próprio ritmo e lugar; enfim, que não adianta você querer mudar o rumo da história se as coisas acontecem naturalmente.
Depois desse entendimento, dessa lição por via do intelecto, Mário observou que a porta que estava ao longe, nada mais era do que o reflexo do seu eu interior. Sem fazer nenhum esforço físico, ele segurou na maçaneta da porta e entrou sala adentro. No fundo daquela sala estava uma mulher de meia idade. Ela escrevia num quadro, como se fosse uma professora, equações matemáticas. Ela era alta, magra, cabelos pretos e longos. Usava calça diz, sapato alto bico fino, camiseta branca transparente, cachecol e óculos escuros sobre a cabeça. - Que mulher linda, perfeita. Deve ser a deusa da sabedoria – pensa Mário consigo mesmo. Enquanto caminhava para aquele encontro fatal, ela se virou para ele e ele a reconheceu.
Ela tirou os óculos de grau que usava para escrever no quadro e pendurou na jaqueta, entre os seios. Admirado por tamanha beleza, caminhava em sua direção, passos lentos, pernas bambas, vista turva. Quando eles se abraçaram, ela se revelou: - Eu sou a sua mãe.
Foi à única vez que Mário sentiu-se realizado como ser humano. Na verdade, se Mário fosse crente, diria que foi um encontro divino. No entanto, como ele não foi educado em colégio de padres, apenas recitou Lucas 8, 20-1: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a praticam”.
Quando Mário foi ministrar a sua primeira aula de Química num cursinho preparatório para estudantes carentes da periferia de São Paulo, ele disse: - Se o paraíso existe -, e ele deve existir, se não eu não estaria aqui com vocês -, deve ser como o encontro entre duas pessoas que se amam.
- E o que é o amor, professor? Perguntou um aluno que estava sentado bem na fileira da frente e que o conhecia de longa data. - O amor, meu caro amigo, é a cura do mundo. - E qual é a melhor forma de amor? Insistiu aquele jovem.
- Não importa o amor, o importante é amar - disse Mário. E continuou o seu discurso: - É mais ou menos como disse o filósofo medieval Santo Agostinho, pensador que eu gosto muito: - “Ama e faz o quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos”.
Por fim, Mário com voz vitoriosa disse: - O amor liberta.