O Salto

Quando chegou ao alto do monte, sobre as pedras, resfolegava. Uma cabra berrava, diminuta, num capinzal verdejante no sopé do monte, na periferia de Itaberaba. Alguns sujeitos corriam atrás de uma bola de couro, num campo de barro, dezenas de metros abaixo. Um caminhão engendrava manobras difíceis na estrada estreita, barrenta, lá embaixo. Mais distantes, luzes se acendiam em casebres pobres, no Jardim das Palmeiras. Sons alcançavam o cume do morro, distorcidos. Eram imprecações, canções, conversas em tom rude, ralhos com crianças, resmungos.

Atrás, fincadas no solo ressequido do monte, repousavam imponentes torres metálicas. Quando a noite caía, acendiam-se no topo pequenas lâmpadas vermelhas, muito vivas. Contrastavam com a luz alaranjada das lâmpadas dos postes da iluminação pública.

As imensas rochas escurecidas pelo limo eram imponentes. No sopé do monte, disputavam estreitas faixas de terra fértil com o capim viçoso. O tempo aplainara a aspereza das pedras, arredondando-as.

Suspirou. Fechou os olhos. As têmporas latejaram. Olhou a vegetação rasteira dos morros em volta. O sol repetia o imemorial mergulho no horizonte. Nuvens róseas e azuladas acumulavam-se no poente. Aves brancas voavam com sincronia sobre a cidade.

Precisava dar o salto definitivo. Não havia jeito, era uma questão de honra. Ainda que não o testemunhasse, ainda que não colhesse o olhar de espanto e respeito dos que o conheciam. Por que permanecer na interminável roda, amando e odiando, comendo e bebendo, sofrendo e rejubilando-se, observando impassível ou agindo febrilmente, perpetuando o ciclo, o interminável fim e o eterno recomeçar? Por que testemunhar sorrisos e lágrimas, expectativas e frustrações, desprendimentos e iniquidades, triunfos incontestáveis e derrotas acachapantes?

Melhor o salto. Mas e os sofrimentos decorrentes? Maria e as crianças... Seus pais... Seus irmãos... Os companheiros de jornada... Pensava demais nos outros, era um defeito imperdoável. Carecia da objetividade, do egoísmo material. A abnegação é a virtude dos fracos, dos pusilânimes. Sempre tão correto, tão austero, tão movido por uma força interior, tão racional, tão previsível, tão agradável, tão cheio de virtudes, de preocupações com o próximo. Um fraco, um decadente, um cristão, um enamorado por uma humanidade utópica, inexistente.

Dois passos e o salto, a Liberdade imperdível, completa, sem concessões, sem subterfúgios, sem máscara. E o grande momento, o instante mais marcante, o corpo caindo e o êxtase arrebentando no peito, arrebentando o próprio peito em alguns segundos, abrindo-lhe perspectivas, caminhos jamais trilhados, desafios inimaginados, mesmo que o mergulho o afunde no Grande Nada, na ignorância que transcende a indiferença mineral, na absoluta solidão da inexistência, cuja sutileza escapa às limitações do seu cérebro humano. Como equiparar seus preconceitos a este grande momento?

A mulher. Os filhos. Os pais. Amigos, colegas. A opinião pública. A religião. Os preconceitos. Os dogmas. A ideologia cristã. Nada se equiparava, nada. Nada. O Grande Nada era a ideologia das possibilidades, o último refúgio, o refúgio eterno.

Mas e a coragem? Faltava-lhe... Um choque na rocha a uma velocidade crescente destroçaria o frágil corpo, torná-lo-ia irreconhecível. Bombeiros praguejariam, escalando o penhasco, para resgatá-lo e conceder-lhe um enterro cristão. Enrubesceu ao pensar que arranjaria tarefa embaraçosa para outros, mesmo depois de morto. E se prosperasse a versão de que ele caíra acidentalmente? E se dissessem que foi empurrado, talvez vítima de um criminoso ignóbil? Não trouxera papel, não poderia escrever uma mensagem lacônica despedindo-se, não combinava com a postura despojada que pretendia adotar, partindo sem despedidas prévias, sem os grilhões das explicações corriqueiras, das inevitáveis e penosas justificativas. Só que lhe faltava a coragem, a insensatez de romper, de revoltar-se.

O salto era a redenção, a suprema inspiração, um momento brilhante resplandecendo em meio à mediocridade da vida cotidiana. Carecia daquele instante notável, que o redimiria de todos os pecados anteriores. Comia. Bebia. Fodia. Suportava a mulher, que suportava-o. Educava os filhos com preceitos vagos, esquecíveis. Demonstrava amabilidade com os pais. Era um amigo prestimoso. Nos eventos sociais, desfiava conceitos respeitáveis. Não apregoava revoluções. Respeitava a propriedade privada dos meios de produção. Concordava com os editorialistas dos jornais, que coincidentemente pensavam o mesmo que a classe patronal. Entretia-se com as reportagens banais e absorvia vorazmente os conceitos implícitos que exaltavam e exultavam o despertar de uma cidadania aleijada. Enfim, era um pústula, como todo mundo.

Aos domingos visitava shoppings com a mulher e os filhos. Bebericava chope, enquanto as crianças devoravam sorvetes. Depois comprava uma camisa colorida, demonstrando sua perfeita sintonia com a vida. Íntimo da vida, alegre com a vida. Celebrando a vida através do consumo. Gozava as férias em janeiro, partindo para destinos que sua respeitabilidade previa, mergulhando no turbilhão de consumo que sua condição social impunha, extasiando-se com as mesmas interjeições dos que frequentavam seu círculo e até mesmo enfastiando-se com o mesmo fastio dos que vivem sob confortáveis condições materiais.

Depois, a rotina, o repetir das manhãs e tardes da repartição, o aconchegante repouso noturno em seu lar burguês, a manhã e a tarde seguintes, as reuniões familiares nos finais de semana e o aguardar ansioso das próximas férias, que seriam precedidas por projetos sustentados com os mesmos argumentos das férias dos anos anteriores. Por fim, era o suceder dos anos e as preocupações de cada faixa etária e a inquietação crescente à espera do momento definitivo, de ajustar contas consigo mesmo e resvalar para a cova.

Eis o resumo da ópera. E eis o epílogo a ser transformado com mais dois passos. Um pequeno e inexplicável passo para a humanidade, mas o passo mais importante de sua vida insípida. Mas cadê a coragem? Cadê a intrepidez dos grandes espíritos que praguejaram contra a mediocridade, a rotina, o corriqueiro? Fraquejava! A ideia atiçara-lhe o espírito, mas ele fraquejava, covardemente.

Recuou. Recuou dois passos. Alguns passos. Muitos passos, até chocar-se com uma rocha e agarrá-la com firmeza, como se estivesse à beira do precipício. Galgou-a, contornou a igreja que não frequentava por desleixo havia meses, começou a descer a ladeira íngreme que conduzia à cidade, de retorno. Mas foi cauteloso, porque havia lama acumulada e ele temia machucar-se, caso escorregasse e caísse...