NEOLIBERAL

– Neoliberal !!! Neoliberal !!! Neoliberal !!!

Os estudantes exibiam faixas, empunhavam bandeiras de partidos de esquerda, apitavam freneticamente, pulavam ao sabor das palavras de ordem, apupavam os adversários a dois passos dali. Havia muitos barbudos com cabelos desgrenhados. Camisetas vermelhas, amarrotadas, dançavam nos corpos esguios. Alguns tinham feições raivosas.

Punhos cerrados e cabelos desalinhados realçavam os traços coléricos. Candidatos a Lênin exibiam cavanhaques mal aparados, empenhando-se para dar o tom dos protestos. Alguns tipos exibiam óculos exóticos, que compunham a respeitável fachada dos intelectuais de esquerda.

Carlinhos estava ali pelo meio.

Camiseta surrada, tênis de futebol de salão encardidos, barba imberbe e muita disposição para fustigar o capitalismo monopolista. Aprendera a condená-lo num surrado manual de Economia Política.

Os Neoliberais estavam a dois passos. Eram sujeitos sisudos de meia idade, ou mais velhos. Exibiam paletós bem cortados, gravatas em tom discreto e lustrosas pastas de couro.

Preferiram ignorar os manifestantes.

Foram convidados para participar da aula magna. Além de sisudos, eram imponentes, tranquilos e seguros: exalavam a confiança de porta-vozes de uma doutrina que não exibia fissuras ou contradições.

E os estudantes ali, patinando naquela dialética escorregadia. Ficavam se espezinhando no complexo emaranhado de teorias, siglas e bandeiras inconciliáveis.

Carlinhos ficou matutando sobre aquilo, que o intrigava.

Mas não entrou no auditório. Ficou do lado de fora, distribuindo o jornal do Centro Acadêmico e vendendo uma revista socialista do Partido. Concorria com um sujeito magro, de barba profética, que entregava panfletos do Partido Revolucionário Bolchevique e calçava sandálias de couro cru.

O incômodo daquele dia passou a aperreá-lo.

E o acompanhava nas longas viagens de ônibus da militância estudantil, nos acalorados debates nas assembleias da universidade e nas reuniões do Partido, nas tardes de sábado, quando discutiam a linha política. Aperreava-o também quando redigia os panfletos em velhos computadores lentos; ou quando os distribuía pelos corredores.

Nem quando fumava um baseado trancado no Centro Acadêmico – ou quando a namorada discorria sobre questões de gênero na teoria revolucionária – ele tinha sossego.

O incômodo passou a angustiá-lo.

Na eleição da reitoria a ampla coalização da esquerda tinha chances contra os neoliberais. Bastava sossegar os radicais.

Carlinhos era um deles.

Foi convidado pelo professor Pedroso para uma reunião de cúpula. Pretendiam domá-los. Resolveu ir.

O candidato da coalização era calvo, de meia-idade. Exibia um sorriso permanente e era furiosamente persuasivo. Gostava de vinhos finos, tinha carro possante e era amigo dos neoliberais. Falou de um difuso projeto da esquerda e, numa cena mais teatral, abriu as janelas do terceiro andar para mostrar o campus silencioso na manhã ensolarada:

– Venha se juntar ao nosso projeto, Carlinhos. De que adianta esse radicalismo?

Dias depois Carlinhos panfletava pelos corredores, improvisava discursos nas cantinas, nos pontos de ônibus e no restaurante da universidade. Insinuava que poderiam arrastar as contradições de classe para o novo reitorado: melhor que o distanciamento estéril da abstenção. Na comemoração da vitória, foi apoteoticamente erguido pelos novos aliados.

O incômodo pulsava, mas foi definhando.

Quando concluiu a graduação Carlinhos foi guindado a uma assessoria parlamentar. O deputado gostava de uísque, de férias no exterior e de refeições requintadas em bons restaurantes. Levou-o às tratativas que resultaram numa ampla coalizão cujo destino inexorável era varrer as velhas oligarquias do poder.

– Nosso projeto é renovador, Carlinhos. Vamos mudar o estado implodindo as velhas oligarquias, Carlinhos – exultava o deputado.

– Faremos a revolução, deputado – exaltava-se Carlinhos, ainda sem o traquejo do novo vocabulário. Naquele ano surraram a velha oligarquia nas urnas.

Carlinhos varou o interior em campanha. Cumprimentou tabaréus, coordenou a distribuição de material da eleição, integrou espinhosas negociações para acalmar os ânimos dos mais refratários às alianças. E colheu elogios à sua atuação. Bebeu uísque nas varandas dos palacetes dos novos aliados, circulou em caminhonetes possantes para arregimentar apoiadores, participou de churrascos homéricos regados a cerveja, recebeu abraços dos companheiros mais exaltados.

A farra monumental, porém, ocorreu à beira-mar, na noite do domingo em que os resultados das eleições foram divulgados. Carlinhos reencontrou o ex-reitor – que agora pleiteava a Secretaria da Educação no futuro governo –, travou curto diálogo com o senador conservador que compusera a chapa e abraçou o governador eleito, eufórico e embriagado.

– Vencemos !!! Vencemos !!! – Exultou Carlinhos.

Nos meses seguintes Carlinhos enfronhou-se na equipe de transição com disciplina stalinista: farejou espertezas nos relatórios de prestação de contas dos adversários derrotados, imergiu nos dados estatísticos que desenhavam o quadro calamitoso do Estado e mapeou, com precisão cirúrgica, a máquina que herdariam e a correlação de forças da coalização que precisavam acomodar.

– Parabéns, Carlinhos. Excelente trabalho !!! – Ouvia dos burocratas do partido que, insones, esticavam a jornada de trabalho com meia-dúzia de cervejas na Orla Atlântica.

Carlinhos compareceu à posse do governador com um paletó novo que o incomodava um pouco. Os sapatos lustrosos, impecáveis, eram acessório pitoresco. Lá havia sorrisos, abraços, brindes e o êxtase grosseiro dos que debutavam no poder.

Foi premiado com um cargo na Secretaria da Educação. Coisa de lidar com universidade, aonde calejara como pedra.

Agora, seria vidraça.

Carlinhos arregaçou as mangas: acumulou centenas de horas de negociações salariais insípidas nos gabinetes refrigerados, sempre polido, firme e calmo; articulou parcerias com empresários hábeis e felpudos; negociou débitos com fornecedores iracundos; contornou manifestações estudantis com manobras que, noutros tempos, condenaria com discursos incendiários.

Foi galgando.

Um dia, almoçou com o Governador e assessores. Noutro, compareceu a uma solenidade em Brasília, na Presidência da República. Nos corredores das universidades, fustigavam-no com notas furiosas, censuravam-no com palavras amargas.

– Traidor!!! Pelego!!! Vendido!!! – Vociferavam antigos parceiros de militância.

Um dia ganhou uma tarefa amena: falar sobre política científica e tecnológica na universidade aonde estudou. Naquele mesmo auditório aonde fazia discursos e distribuía panfletos incendiários.

No dia havia uma turba de estudantes ensandecidos à porta do auditório. Exibiam faixas, apitavam, empunhavam bandeiras de partidos de esquerda. Uns exibiam cavanhaques leninistas, cabelos longos, retórica carbonária.

Carlinhos foi recepcionado pelo mesmo coro que ele próprio entoava duas décadas antes:

– Neoliberal !!! Neoliberal !!! Neoliberal !!!

Exibia paletó bem cortado, gravata em tom discreto e uma sofisticada pasta de couro. Preferiu ignorar os manifestantes. Exatamente como fizeram aqueles senhores sisudos que ele apupou duas décadas antes.

Aquele incômodo de outros tempos já não martirizava Carlinhos.