A CAIXINHA DO AMANHÃ

Lera, algum dia, em algum de seus livros, que é preciso encontrar um motivo para que a vida faça sentido. Sem esse bendito motivo, alguns seres humanos prefeririam renunciar à própria vida a continuar a caminhada na saga lamentosa.

Lembrava-se, que no momento em que leu esse trecho,  fechou o livro, o pôs sobre as pernas, cerrou os olhos e suspirou forte. Há tempos sentia que a vida andava “bamba das pernas”. Trabalhava duro, mas não acreditava no próprio trabalho. Executava-o mecanicamente, pois este era-lhe agora totalmente sem sentido, despropositado, em prol de uma causa vã. Trabalhava, porque carecia de dinheiro para pagar as dívidas, mas sempre apareciam outras novas e faltavam-lhe recursos para supri-las. Passear? Conhecer novos lugares? A vontade perdia-se na falta de financiamento. "Maldito capitalismo!", pensava. Estar com amigos? A humanidade lhe soava por demais odiosa. Sentia asco das pessoas, de seus preconceitos, de suas hipocrisias. Era mais cômodo continuar em sua velha cadeira de balanço, mergulhada nas incríveis histórias dos seus adoráveis livros.

Todavia, sabia que precisava olhar além, respirar, talvez, novos ares, dar oportunidade para novas experiências, traçar, quem sabe, novos objetivos. Teria, no entanto, que ter força de vontade, coragem e determinação para sair das trevas em que se encontrava e ver a luz novamente.

Foi, então, a partir desse momento reflexivo que sua mente começou a arquitetar planos e mais planos para sair daquela situação depreciativa. Sentia-se, por um breve momento, otimista. A euforia da mente pungia fervorosa e, de repente, um jardim florido despontava ao seu redor (as histórias lidas contribuíam  para embelezar suas aspirações de uma vida melhor). Porém, seu corpo não conseguia acompanhar o ritmo da mente. A fadiga exagerada a deixava em um estado de esgotamento lastimável. E sempre que tentava dar um passo a frente, recuava e guardava as suas brilhantes ideias numa caixinha dourada e florida, dentro de si, para usá-las no amanhã. Então, retornava à reclusão e dormia um sono intranquilo imaginando como seria esse tão sonhado amanhã.

Acordava, entretanto, maldizendo-se de tudo e de todos; “Que dia horroroso!”, “Que vida sofrida!”, “Que pessoas lazarentas!”, “Que sol maldito!”, “Que tédio interminável!”. Só sentia-se melhor quando abria a janela e se deparava com um dia cinza de chuva. Era quando esboçava um sorriso amarelo e o coração palpitava um pouco mais forte. O dia melancólico era bálsamo para a sua alma lamacenta. Abria mais um livro, adentrava numa nova história e a mente novamente fervilhava de planos e ideias de renovação. Ah!... Mas ainda estava cansada e preferia continuar caminhando nas ficções à escrever a sua própria realidade. E mais uma vez guardava as preciosas ideias na caixinha. Um dia com certeza as usaria num amanhã, num tão esperado amanhã. 

E foi assim durante muito tempo. Seus dias oscilavam entre pensamentos nebulosos e lapsos límpidos de esperança. Era uma busca incessante para ver suas ideias de paz e harmonia reinar na sua vida. Na confiança de um amanhã mais ameno, deixou escapar o amor e abdicou do ensejo de ter filhos e de formar família. Interessava-lhe apenas a obsessão da busca pela salvação de seu espírito.

Até que veio a queda, e foi diagnosticada com a doença da alma, assolada pelo tal do mal do século, que assombra boa parte da humanidade. As ideias guardadas na caixinha passavam tempos esquecidas. Chorava a maior parte do tempo; chorava pelo vento que soprava, pela folha que caía, pela impotência ante as mazelas do mundo, pela indiferença humana. Chorava, porém, vez ou outra, lembrava-se de sua caixinha interna e fortalecia-se novamente. Mais anos e anos na queda e na ascensão.

A velhice, enfim chegou. Foi diagnosticada também com a tal doença da cabeça. Aconselharam-na a escrever seus afazeres para não esquecê-los. Foi quando, novamente, a caixinha abriu-se. Não, não podia abandona-la. Ela fora o motivo pelo qual jamais desistiu da caminhada. Nesse dia, sentiu-se um pouco melhor, banhou-se com perfume de rosas, vestiu sua roupa mais conservada, fez um bonito penteado e pôs um pouco de maquiagem no rosto (e por que não? Já fazia muito tempo que não usava um pouco de cor naquele rosto melindroso). Saiu na rua toda garbosa, entrou num armarinho e comprou o caderninho mais florido que lá existia. Ela ainda amava as flores, pois faziam-na lembrar das histórias juvenis que tanto apaziguaram o seu coração dolorido. Voltou para casa, ajeitou um cantinho charmoso na escrivaninha, e à moda antiga, transferiu todo o conteúdo da caixinha para aquele pequeno caderninho carregado de encanto. As palavras abrilhantadas de outrora saltavam às paginas em forma de poesia. Escreveu, escreveu, escreveu até sentir-se exausta, mas aliviada. As palavras doces curaram-lhe a alma, sem que ela percebesse. Depois de muito tempo, dormiu um sono leve e tranquilo... E não acordou mais.

Encontraram-na no dia seguinte, deitada serenamente na cama, com um leve sorriso no rosto, que emanava paz. O seu amanhã finalmente chegara, quando a caixinha, enfim, fora aberta e exposta ao mundo. As palavras ali contidas serviriam para tranquilizar com beleza e candura corações atormentados, como fora o seu durante toda a sua triste vida.

Aline Teodosio
Enviado por Aline Teodosio em 13/06/2018
Código do texto: T6363168
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