Clara

Eu já estava ali desde cedo, não tinha comido nem dormido desde que saíra de casa e duas coisas que não facilitavam o desempenho no meu trabalho, se é que assim posso chamá-lo, era fome e sono. Embora eu fosse uma pessoa nova e atraente isso só não bastava pra fazer o dia render. Tinha que ter disposição suficiente para a prática diária. O motivo de tanta preocupação e esforço para trabalhar? Eu era a maior renda da família, às vezes a única. Algum tempo atrás isso soaria como piada para alguns conhecidos e até para minha própria família. Como dizem por aí, “santo da casa não faz milagre”, eu não era nem de longe santo, mas fazia muito milagre.

O dia hoje tava difícil, já eram nove da manhã e eu ainda não tinha ido sequer até a rua de trás. De vez em quando sentava no batente da lojinha do seu Manoel, debaixo de um toldo velho e desgastado, igual ao dono. Seu Manoel era português fajuto, filho de portuguesa com um francês, nascido em Lisboa e criado aqui em Fortaleza desde os cinco anos. Herdou a venda do pai quando este se suicidou logo após saber da traição da portuguesa com um “negão do Rio”. Contou-me tudo isso no primeiro dia em que nos conhecemos, no dia em que comecei a trabalhar por ali. Ele não fazia questão em que eu abordasse os clientes em frente a lojinha dele, sabia das minhas condições, ou da falta delas. Fora algumas vezes em que ele tentou se engraçar pro meu lado eu até simpatizava com o velho, e quando estava de bom humor dava uns agrados a ele, de graça.

Mas hoje o dia não estava para regalos e nem eu estava bem humorado. A roupa justa e escura era desconfortável, embora eu já fosse acostumado, e o sol cáustico me fazia suar quando eu ia até a esquina e voltava de vez em quando. Essa era a pior parte em se trabalhar de dia. Tinha que usar de vários truques para não ficar molhado de suor, usando na maioria das vezes roupas de algodão e fibra natural e passando bicarbonato de sódio nas axilas e no rosto sem estragar a maquiagem. Aparência é fundamental no meu ramo, tanto quanto higiene, e a concorrência também sabia disso. Mas eu confiava na minha experiência e sabia que por ali os meus serviços eram os mais requisitados. Fica mais fácil quando me ligam, embora eu prefira fazer isso à moda antiga. Não voltava pra casa com menos de quatrocentos reais por dia, ás vezes faturando até o dobro. Ainda assim é pouco levando em conta os riscos da “profissão” e os 70% do “chefe”.

Trabalho para o Fred há cinco anos e ele nunca considerou o meu esforço pra me dar sequer um dia de folga. Às vezes dava vontade de mandá-lo dar um passeio em Prypiat. Só que eu tinha que levar em conta que na época, ele foi o único que me deu apoio e me aceitou. Primeiro porque eu era de menor, e mesmo que ele não se importasse muito com a polícia não gostava de facilitar e perder um de seus subordinados. Quem se dava mal era a gente e não ele. Segundo porque eu não tinha ainda algo que chamasse atenção da clientela: um corpo desejável. Mas quando o procurei, através de uma amiga que já trabalhava pra ele, ele nem sequer me deixou terminar de explicar minha situação.

− Você tem que comer muito feijão com arroz, docinho. Ou tá pensando que dar uma bimbada três vezes todo dia é mole?

Até que apelei pra parte pecuniária e disse que estava disposto a dar os 70% em vez dos 60% que ele costumava cobrar. Ele não pensou nem duas vezes em me aceitar e ainda disse que eu tinha um grande potencial e um bom futuro nas mãos dele.

E cá estou me escalpelando numa temperatura de 35°, numa rua movimentada do centro comercial de Fortaleza, quase ao meio dia. Vejo as pessoas passando e indo desfrutar dos seus horários de almoço, com seus trabalhos normais, seus patrões normais, suas vidas normais. Acendo um cigarro e começo a pensar na vida, soltando a fumaça e vendo ela se dissolver junto com os problemas do passado. Minha família devendo a um agiota; meu irmão drogado levando tudo de casa; meu avô apoplético; minha irmã que desapareceu sem deixar rastros. Tudo isso ao meu redor e eu sem fazer nada? Só porque ainda era uma criança? Eu podia fazer alguma coisa. Estou fazendo. Minha mãe pagou a dívida, meu irmão está internado, meu avô tomando todos os seus remédios e minha irmã... Bem, com essa eu nunca me importei. E eu, o que eu fiz pra mim? Que futuro eu tô construindo? Nunca liguei muito pra esse negócio de fazer planos e pra ser bem sincero eu prefiro mesmo é me preocupar com o presente. Não retomei os estudos, não tenho muito tempo pra isso. Trabalho catorze horas por dia vou pra academia depois do fim do expediente (Fred sempre diz que dá pra melhorar um pouco, embora eu soubesse que meus 78kg e meu 1,80m de altura já bastassem) e o restante era só pra dormir. Minha mãe nunca concordou com tudo isso, mas sabia que não tinha alternativa.

− Ainda dá tempo de você reformar sua vida meu filho.

E no mesmo dia:

− Seu avô esse mês deu mais despesas do que a gente esperava e o dinheiro acabou indo rápido demais com o tratamento.

Coitado do vovô. Sabia que não era dele que vinha o maior gasto em casa. Meu pai era um ex-funcionário público, demitido depois que um novo prefeito entrou e colocou todos os terceirizados na rua. Era almoxarife. Não conseguiu mais nada depois, e nem sequer tentou. Vivia bebendo num bar perto do Mercado Central e se esfregando com umas vagabundas à noite. Tudo isso com meu dinheiro. Não o julgava por isso, não tinha argumentos que não fossem me contradizer. Mas tinha pena da mamãe.

Enquanto pensava nisso tudo um Frontier 2013 esverdeado se aproximou e encostou na calçada. Quase dei um suspiro de alívio. Aproximei-me do carro rebolando o suficiente pra destacar meu quadril definido. Dei uma batidinha na janela e ajeitei os cabelos tingidos de louro pro lado. O cara abaixou o vidro e segurou nas partes íntimas me analisando com um olhar de desfaçatez. Mantive-me alheio a isso e quando ia falar ele me interrompeu:

− Você que é a Clara?

−Sim.

Sorri comigo mesmo pensando no nome que minha mãe escolhera. Clara. Ela fez uma promessa pra santa quando tava grávida de mim depois que soube pelos médicos que ia ter complicações no parto se fosse normal. Sorri de novo com a ironia.

O cara fez um gesto com a cabeça e eu joguei a guimba do cigarro no chão, pisei em cima e entrei no carro. Quando deu a partida esqueci tudo que vinha pensando a manhã inteira e só pensava em quantos outros eu atenderia se o dia continuasse naquele ritmo. Três, quatro, talvez cinco se eu ficasse até às onze da noite e deixasse a academia pro dia seguinte. Esse era o futuro que eu tinha em mãos. O amanhã.

Leandro Pedrosa
Enviado por Leandro Pedrosa em 02/06/2018
Código do texto: T6353762
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