Ah se o tempo não passar II

Lito acompanhou o avô até a cozinha, sentou-se à mesa junto de Seu Lelo e Dona Ceição enquanto ainda pensava na conversa com o velho. Tinha tanta informação na cabeça que nem atinou para a avó entregando-lhe um pedaço de bolo.

- Lito, acorda, filho... – Dona Ceição chamava atenção para o que fazia a mesa e sorria ao falar – Prest’enção, Lito. Está com o pensamento mais fraco do que eu que sou jovem a mais tempo que você.

- Ah vó, deixa de bobeira.... Estou mais esperto que a senhora e o vô. – E riu. Observou que Lelo se mantinha concentrado no lanche.

- Que foi, Lelo, que te deixou mais quieto que coruja de dia?

- Ué, não foi nada, oras... Mania de achar que sempre tenho problema, Ceição. – Respondeu Lelo com um olhar sério. – Eu não sou mais criança!

- Ára!? Isso eu sei. Todos sabemos. – Dona Ceição logo retrucou rindo as resmungações do marido. Nem ele próprio, atingido pelo sarcasmo da esposa, conteve o riso.

Os três terminaram o lanche aos risos. Dona Ceição foi mais que ligeira lavar a louça enquanto Lito e o avô sentavam-se nos toquinho de madeira.

- Sabe, vô...

- Hmm – Seu Lelo respondeu baixinho já esperando o assunto que Lito trataria.

- Eu não entendi muito bem as coisas que o senhor falou antes. Tipo... – pensou para se explicar melhor – Não entendi o que te chateia. – E aguardou.

O velho pegou o cachimbo e terminou a limpeza com o canivete; pegou um pacote de tabaco do bolso e dali tirou um molho de fumo. Colocou o fumo com cuidado no cachimbo para não fazer sujeiras.

- Não tem nada que me chateie não. – E pronto, estava aceso o cachimbo.

Lito ficou confuso:

- Mas a vó Ceição disse...

- Ah, nem a dentadura fica na boca da sua avó, Lito. – Lito e o avô, rindo das palavras, rezavam com o olhar para que ela não tivesse os escutado.

- Sério, vô! O que afinal chateia o senhor?

- Suas perguntas! – Seu Lelo ergueu uma sobrancelha e riu ao ver o espanto do neto. Deu uma breve tragada no cachimbo e continuou – Me chateia ver que tudo está pelo fim, sabe, Lito?

- Ah, vô, para com esse assunto de morte. O senhor tem mais saúde que eu.

- Tenho mesmo. Você come tanta porcaria que logo, logo vai ter que tomar remédio de gente velha.

- O senhor vai viver mais uns cem anos, vô!

- Ah, Lito, cem anos passam mais rápido que vinte.

- Como isso? Cem é um número maior.

- É como escrever: quanto mais se pratica, menos damos conta do quanto produzimos.

- E o senhor é poeta?

- Lógico que sim. Mas sou como muito poeta não-escritor: faço da minha vida uma poesia. – Mais um pito e um olhar ao redor da sala – alguém que não me lembro quem disse que “sua arte é o que te eterniza”. Então, para que escrever? Uso a vida, Lito.

- E tem mais gente assim?

- Ixi... Pergunte ao primo João Cabral. Ele te dará uma boa explicação sobre o quanto “somos iguais em tudo e na sina”.

- E o senhor acha que somos iguais, vô?

- Tem mais coisas que nos igualam do que um DNA de pai e filho. – Seu Lelo só sorriu e pitou o cachimbo depois disso.

Para Lito, menos coisas faziam sentido agora (naquele momento).

Crônicas de um Ignorante
Enviado por Crônicas de um Ignorante em 28/05/2018
Reeditado em 13/01/2019
Código do texto: T6348651
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