Clarice

“A lua, os gerânios e ele serão os mesmos

— só a mulher entre as coisas envelhece.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?

Como a fecharei, se não for santa?”

Adélia Prado

Clarice chegou um pouco mais cedo a casa. Somente hoje não fizera hora extra. Teria tempo de lavar as roupas da semana, renovar o estoque de legumes da geladeira e trocar a cor do cabelo.

Clarice morava em uma casa de quatro cômodos e varanda. Apesar de morar sozinha, sentia que estava acompanhada de todos que moravam nas proximidades. Quando fechava os olhos à noite, abstraia as paredes da casa e os muros e imaginava que todos os seus vizinhos e a cidade inteira dormia em camas sob o céu. Nunca disse a ninguém, temia ser chamada de louca.

A casa era toda pintada de amarelo-ouro com pequenas faixas horizontais em verde. Modelo-padrão do conjunto habitacional. À frente havia uma pequena goiabeira de folhas lívidas. Ao fundo, o minúsculo quintal. Na varanda, já de vestido, Clarice saudava o meio dia, com os braços no peito e empertigada para frente como se estivesse reverenciando o jardim.

Casa e jardim espalhavam limpeza e ordem, mas Clarice estava impaciente. Olhava o tempo todo para além da varanda. Estacou um pouco, em silêncio absoluto, procurando sinais da presença de alguém no caminho ajardinado que dava para a casa. Nada, nenhum barulho próximo. Ao longe chegavam os acordes desafinados do músico do barzinho.

O jardim brilhava para a rua como os raios de sol brilham numa poça de lama. Fazia questão de ter e mantê-lo agradável e sortido. Havia rosas, jasmins, orquídeas, dálias, açucenas e gardênias dispostas em três canteiros circulares. Com esse jardim podia exercer a sua humanidade. Todo ano, no dia dois de novembro, fazia três grandes ramalhetes e, em segredo, levava-os à necrópole municipal. Lá, os deixava sempre nas sepulturas mirradas e pobres. Nem ela mesma sabia ao certo se fazia isso por filantropia ou por seu arraigado medo da morte.

Sempre fora possessiva em relação aos seus pertences. Geralmente tivera o básico e um pouco mais. Mas, o vazio que tinha das coisas não podia ser preenchido com pessoas. As poucas amizades reclamavam semanalmente sua presença. Não é que se desgostasse de estar com elas, mas pressentia que quando saía de junto delas estava cansada como se houvesse feito um exaustivo trabalho braçal. Nesses dias, cogitava dormir no jardim. Só não o fazia por causa do sereno.

Às três da tarde chegou visita. A amiga trazia uma pasta contendo mostruários de miudezas. Ficaram na varanda dos fundos, conversando e ingerindo refrigerantes diet. Enquanto a amiga esmiuçava sobre a mesa brincos, pulseiras e batons, Clarice olhava de boca aberta por sobre o ombro dela. Não podia acreditar no que estava vendo, por isso puxou a outra silenciosamente pelo cotovelo para testemunhar o acontecimento. Os olhos da amiga e a boca ficaram tão abertos que Clarice teve de estalar os dedos diante dela, como que a dizer que a surpresa era toda sua. A primeira em três anos.

Juntas, na ponta dos pés, se aproximaram do palete afixado à parede. Nele havia um festival de borboletas lilases, amarelas, azuis e alaranjadas. Quando alçaram os celulares à altura dos olhos as borboletas esvoaçaram indisciplinadamente. A amiga sorriu silenciosa e Clarice, com os olhos úmidos, adivinhava felicidades.

Recostaram ao muro e ficaram. Uma acompanhava o bailado ascendente das borboletas, a outra tentava, a custo, fotografar o voo aleatório. Depois, se olharam e riram como se tivessem ouvido a mais gostosa de todas as piadas ou o mais picante segredo. Sobre a mesa ficaram as amostras-grátis e as bijuterias.

Foram para a frente da casa e, instintivamente, abaixaram ao mesmo tempo para acariciar a rosa azul única. As cabeças se tocaram macias, protegidas pelos densos cachos. Os narizes se tocavam fortuitamente, mas as mãos não. Estavam ocupadas com a maravilha da natureza e precisão da ciência, por isso deram tapinhas umas nas outras. Levantaram-se depressa, olhando ao redor, e caminharam para o interior da casa.

No sofá e com os pés na mesa de centro a amiga falou que hoje a noite promete ser boa. Gritou para ela que precisava lhe apresentar alguém. Hum hum, respondeu Clarice entredentes. Enquanto passava o café, olhava pela janela e sorria para a desordem ordenada das borboletas sobre o orquidário.

make
Enviado por make em 27/05/2018
Reeditado em 27/05/2018
Código do texto: T6347951
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