QUEM SE IMPORTA COM RATOS?
Arregalou os olhos assustados depois do forte estalo. Um arrepio frio percorreu-lhe a espinha e um sentimento de desespero a invadiu.
Pronto! Lá estava o rato agonizando na ratoeira. Pensou imediatamente em Fernando. Tudo seria tão mais fácil se ele ainda estivesse ao seu lado. Ele já teria ido na cozinha e se livrado da criatura nojenta que dava os últimos suspiros na armadilha. Mas agora ele deveria estar com Suzana, provavelmente na cama, nus, amando-se insanamente. Elisa pensou no rato e não se sentiu em melhor situação que ele; Sozinha, largada a própria sorte, sem esperanças de sair da pior. “Quem se importa com as mazelas de ratos?”. Pensou melancolicamente.
Continuou em silêncio, estática na cama, com o corpo encolhido. Os únicos movimentos eram de seus olhos, que vagueavam por aquelas paredes cor de marfim. Lembrou-se do dia em que decidiram, depois de muitas discussões e beijos, a tonalidade que daria vida ao lar. COR DE MARFIM. Soava elegante e sofisticada. Fernando bem que queria algo mais alegre, talvez um compartimento de cada cor, mas não combinava com a personalidade neutra de Elisa. COR DE MARFIM. Era discreta, sutil. Poderiam dar uma vida ao ambiente com quadros versáteis, eram os argumentos dela. Ele assentiu. Decidiram por fim. COR DE MARFIM. Agora, além dos quadros, enormes teias de aranhas adornavam aquelas paredes. Quando foi a última vez que limpou a casa? Nem lembrava mais...
Pouco importa. As aranhas agora bem que serviam de companhia. Pensou novamente no rato. Será que já estaria morto? Provavelmente. Mas quem se livraria do corpo? Ela tinha plena certeza de que não teria coragem. E quando começasse o estado de putrefação? Nem queria pensar nisso. Estava fraca, não mais tinha ânimo para pensar racionalmente. PUTREFAÇÃO. Quando foi mesmo a última vez em que tomou um banho? Dois, três dias? Não importa. “Ninguém se importa com a higiene de ratos”. Pensou enojada. Encolheu-se mais ainda, agarrando-se ao próprio corpo na tentativa infrutífera de sanar a dor que adoecia-lhe a alma.
E se finalmente sentisse fome? Seria ultrajante desfrutar de uma refeição com um animal morto no meio de sua cozinha. Ter a companhia das aranhas até que poderia ser aceitável. Mas um corpo podre seria demais. FOME. Há quanto tempo não comia? Dois, três dias? O sofrimento não pode ser de todo ruim, decerto já perdera alguns quilinhos. Sorriu e se achou superficial. Isso não importa. “Ninguém se importa com o corpo saudável de ratos”. Pensou ironicamente.
Quando foi que seu castelo, antes indestrutível, começou a ruir? Não lembrava... Sempre fizera tudo certo, dentro dos conformes, como mandam as tais regras da sociedade. Não mais chorou, contudo, adormeceu tentando entender em que maldito momento errara.
Elisa agora via-se perdida nos labirintos de sua mente anestesiada pelos augúrios dos últimos acontecimentos. Quando Fernando decidiu ir embora ela desdenhou. Achou que em alguns dias ele estaria de volta. Ela sempre estava no controle da situação. Chorou por alguns dias, claro, mas depois resolveu investir em seu amor-próprio, acreditando que tudo entraria novamente nos eixos e seu homem voltaria para o seu lar intocável cor de marfim. Esperou dias, semanas, meses... Nada aconteceu. Fernando não voltou, e todo aquele amor-próprio de outrora desmoronou como uma avalanche devastadora.
Elisa entregou-se e caiu de cama. A porta do amor estava fechada e ela sentia-se cega, perdida... Para onde iria? Seu coração batia forte à medida em que ela batia na porta do amor tentando entrar novamente. Por que perdera-se do amor? Lembrou-se dos beijos negados, das dores de cabeça, do seu cansaço exagerado, do enfado do dia a dia. Mas Fernando tinha a obrigação de compreendê-la. Tinha?
A porta fechou-se para ela na mesma hora em que vira uma luz bonita surgir por outra fresta. Seria ali a sua salvação. Mas Suzana adentrou primeiro e fora acolhida com muito esmero e afeto. Era o fim. E nada mais importava. “Quem se importa com ratos desnorteados em labirintos imaginários?”. Pensou pesarosamente.
Agora era só ela e o rato compartilhando de um sentimento de incapacidade e derrota. Quantos caminhos ele percorrera até cair naquela emboscada? Em algum momento ele também deve ter se sentido destemido, traçado estratégias de sobrevivência por entre encanamentos e esgotos nauseabundos, escapado dos perigos do submundo, vencido batalhas titânicas. E onde fora acabar? Numa recatada cozinha cor de marfim, iludido pelo seu ego de rato invencível, traído por sua soberba, pego pelas banalidades do acaso. Os olhos vivazes de ambas as criaturas, antes tão donas de si, agora jaziam esbugalhados fitando o nada em que se tornaram as suas existências.
O cheiro putrefaz empesteava toda a atmosfera da casa. Não, não era apenas o rato em decomposição no meio da cozinha sofisticada cor de marfim, fria e oca de sentimentos... Elisa sufocou-se em lástimas, jamais sendo capaz de sair da própria escuridão. “Mas quem afinal se importa com ratos mortos?”