MORANGOS MOFADOS

Chegou à cidade de madrugada e por isso os vizinhos não viram o carro de mudança; a bem da verdade, nunca houve uma carga trazida ou esperada. Tempos depois uns e outros comentavam que antes de deixar o lugar em que viveu, ela se dezfez de suas memórias emotivas e materiais. Vendeu, deu ou doou cada pedaço do que tinha e partiu com a roupa do corpo. Nunca ninguém soube exatamente o que aconteceu ou quem era ela, pois mantinha - se reclusa e calada. Conquanto saísse para fazer uma caminhada ou comprar um lanche, sorria e cumprimentava tão rapidamente as pessoas, que de fato não deixava espaço para que alguém puxasse conversa. Era agora, a moça da janela. Ora olhando adiante sem ver quem passava, ora olhando para a máquina em que escrevia. Vivia num pequeno quarto alugado com entrada independente. Durante um ano tornou-se o motivo dos boatos do lugar, animou as rodas de bate-papo e a imaginação alheia. Diziam que era uma fugitiva, ou que estava no programa de testemunhas, que fora vítima de violência ou coisas assim. O fato é que aos domingo ela não saía. Passava o dia no quarto em completo silêncio. A governança comentava ouvir passos que levavam sempre a um mesmo lugar. Da cama para o banheiro e vice-versa. Decidiram então, por ocasião do dia das mães, fazer - lhe uma surpresa, levariam a refeição dominical, um bom vinho e comemoriam na casa da locatária que por sua vez estenderia o convite à inquilina reclusa. Seria a ocasião perfeita para decifrar todos os enigmas e juntar as pontas soltas na imaginação popular. Chegaram bem cedo à residência para acertar os detalhes. Após baterem insistentemente à porta, preocupadas, decidiram forçar a entrada. O quarto estava devidamente arrumado, cada coisa em seu lugar, exceto o cheque sobre a cama e na escrivaninha, junto a Olivetti lettera 82 verde, uns poucos morangos mofados.

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Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 27/05/2018
Reeditado em 27/05/2018
Código do texto: T6347707
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