Reconstruo seu olhar hoje e percebo que há muito tempo atrás ele era mais vazio. O movimento que percorre seus olhos toma o caminho dos seus 63 anos de maternidade, dividindo-se entre vistas do céu e chão. Seu rosto carquilhado pelo tempo recobra-me infinitas histórias que não tenho coragem para contá-las. Estas sempre recompostas na sublimidade das conversas ditas entre o fim do quarto para o início da sala, ao mesmo instante em que o peso do tempo prefaciava as nossas noites.

Histórias que me fazem tocar a eternidade a partir de um aparato feminino: a bolsa de couro, cerrada ao meio pelo fecho-éclair quebrado, uma escova entremeada de alguns fios cabelo, que outrora figuravam em singelas formas de conquista, e uma estrela de papel carcomida em suas pontas. É a feminilidade posta no cenário da penteadeira que me recorda o início destas histórias, cujas só se mostrarão fiéis na minha descrição, se forem confundidas em palavras propícias ao nosso cotidiano. Elas estão postas por detalhes em nossas almas. Caminhando por elas, descobríamos quem éramos tão somente a partir de nós dois.

Sua mão ao passar sobre a minha cabeça se dá conta que também não fiquei imune nestes 63 anos. Coberto por estes poucos cabelos clareados, passo a recontar algumas destas histórias confundidas entre masculinidade e feminilidade, que foram ligadas há muitos anos atrás por um cordão umbilical. Dona Tânia hoje me recorda o que é ser mãe de menino. Isenta das bolsas e pranchetas que demarcava seus ofícios de funcionária e da vaidade que engolia o cetim do seu vestido, é no regalo de seu corpo, imprensado no mundo, que sou possuído pelas nossas memórias.  

Minha mãe e meu pai eram vizinhos de setores na Fábrica Maguari. Vez por outra se cruzavam pelos corredores que davam acesso ao refeitório. Mesmo lotados em espaços de trabalho diferentes eles tinham o mesmo supervisor, o que fez com que os dois passassem a ter queixas em comum e mais oportunidades profissionais para relacionarem seus serviços.
 
O currículo dos dois traduzia o sucesso daquela parceria profissional: minha mãe tinha dezesseis anos e mal tinha terminado o ginásio. Laços de fita no cabelo e uma semi-bolsa que escondia na blusa um remendo que acanhava o movimento das suas mãos. Meu pai acabara de receber seu primeiro emprego e aparecia sempre com a foto de uma criançinha que todos desconhecíamos a origem. Suas relações profissionais resultaram em um curso de mudanças nunca antes visto na empresa:

- Quem é esse bebê lindo da foto? É a sua filha?
- É sim, (risos). Pense numa dificuldade de dar conta do dia-a-dia desta moçinha: Acordar de madrugada, trocar fralda, dar banho. A empregada não pode estar lá em casa todo dia.
- Você é solteiro?! Ah... Deve ser bastante trabalhoso mesmo...

 
As conversas sobre a vida passaram a dividir espaço com as pranchetas e as metas de produção dos setores. Ante as solicitudes das relações fabris, irrompo nas entranhas daquela mulher, preparando-a para um caminho sucessivo de ambivalências que a partir daquele instante, passariam a fazer parte da nossa história. Os amores profissionais têm suas responsabilidades. Inaugurei uma nova rotina de trabalho para o dia-a-dia daquela funcionária.
 
A feminilidade daquela jovem me protegeu da morte no seu útero. Eu habitei seu corpo na mesma intensidade que o ódio. No início de tudo, uma noite sobre o seu ventre nos dificultou bastante. Eu passei a dividi-la com a força de muitas outras coisas. E em meio a chutes e socos, a minha voz enterneceu aquele lugar. Eu cantei para minha mãe os hinos que um dia a fez filha, e ela viu uma estrela em seu cordão umbilical que me tirava das sangrentas sombras de suas hemorragias e me transportava para o lado esquerdo do seu peito. Revolucionário mesmo foi ver todo o seu corpo transforma-se em um santuário. Neste segundo ventre me tornei promessa.
 
O ultra-som cuidava das antecipações necessárias: eu era um menino! Meio de graça que estancou as saudades do meu pai. O alargamento do seu corpo formatou sua consciência: não era apenas uma criança que ela estava gestando, mas um homem seria parturido de dentro dela. Com todas as ambivalências assinaladas pelo apóstolo: “Porque, como a mulher provém do homem, assim também o homem provém da mulher, mas tudo vem de Deus”. O rosto do meu pai esculpido na minha face, ainda me manteve com ela por mais algum tempo. O tempo necessário para que a vida se mostrasse melhor que o aborto. Tornei-me realidade. Ungir seu peito de leite e lhe preparei as memórias.
 
Os meus olhos se moldam à intensidade das cores. Algumas delas até conseguia contrastar. As coisas tinham nome que precisavam ser apontadas com o dedo. Mas o que me chamava atenção mesmo eram as delicadas pinturas que se assentavam sobre o fim da nossa casa. Bem lá no fundo de tudo. Perto de um laranja que se destila sobre meu telhado. Meus choros e risos são sem motivos poéticos, e colorem de rabiscos sonolentos os papéis daquela funcionária, incontestavelmente mais assídua com o tempo e as exigências que lhe cabe. Sobre a necessidade das cores: com o passar do tempo, tudo lá em casa passou a ser azul. O azul que segura as estrelas no céu são os olhos do mundo e os olhos são a aprova da existência de Deus.
 
Em um caminho confuso desde a gestação, o contraditório nos cerca como me cerca os olhos dela. Eu era o primeiro homem a caber nos seus braços, quase na palma da sua mão. O primeiro também a estar despido em sua cama lhe cobrando diferentes intenções. O masculino nunca lhe apareceu tão frágil assim. E com tão perspicácia arguição cotidiana:

- Mamãe? Porque a senhora faz xixi sentada?
As contradições desapareciam quando ao findar o banho, os meus cabelos eram moldados conforme os desígnios do seu coração. E o talco cercado pelas nossas perspectivas, definia o mundo a partir das coisas de bebê. Eu possuía o seu corpo agora pelo lado de fora. Minha mãe me segura, quase como Deus segura o mundo.
 
Os anos foram se passando e as bonecas de pano, que até alguns anos atrás suscitava ainda alguns caminhos lúdicos àquela funcionária, foram substituídas pelos super-heróis musculosos e as pistas de corrida. Tornei-me criança. E minha mãe tem memórias de quando também era criança. A recordação figura sobre uma estrela de papel entregue a sua mãe na volta do primeiro dia de aula. Em cada ponta, as letras que rebatizavam sua genitora: M-A-M-Ã-E. Em cada mão: a entrega e a acolhida, que sozinhas as fizeram atualizar o magnificat da virgem: “Pois eis que desde agora todas as gerações me chamarão bem-aventurada”.
 
Jogando com a minha masculinidade, ela passou a inventar brincadeiras para sobreviver. De calça jeans e camiseta, foi à princesa que arrebatei das mãos dos mais vorazes inimigos. Nossos quartos foram transformados em reinos mágicos com monstros, heróis e princesas para salvar. Aprendi com a ausência do meu pai a ser o seu cavalheiro, a ser seu salvador... A ser sua estrela. A ser muitas das vezes o único horizonte possível para ela. Fui sua estrada.
 
Na adolescência descobri outras feminilidades. As preocupações ordinárias não dizem mais respeito às bolinhas de borracha entupindo a pia. Minha bolsa é revistada, assim como o seu desejo de me revirar o coração, e ver quem foi a responsável por me fazer erigir o corpo. Recuso-me agora a sua segurança. Tornei-me homem. No abrir da noite vou sonâmbulando meus olhares na direção de outro seio, que busco com mais velocidade do que buscava seu leite materno. Já não sou seu único, tem Isabela agora. Deixei sua estrela pelas saias do mundo.

Na resistência à solidão, seu esconderijo passa a ser uma boca pintada e um decote sugestivo. Seu corpo passou a sofrer de insuficiência de pano. A antiga funcionária recobra seus ofícios. Minha mãe torna-se mulher novamente. No entanto, a ultrapassagem dos quarenta requer moderação. No final do feriado, a vida nos fez mãe e filho pela segunda vez. Minha mãe chega em casa se afogando no mesmo ódio que também pela segunda vez habitou o seu corpo. Ela busca os mesmos quartos que vivenciamos realidades mágicas para se afundar agora em histórias de homens que se transformam em monstros.

- Quero ficar sozinha!
- Mãe?! Tá tudo bem?

A vida nos surpreende com cuidados concursivos. Pela segunda vez fui seu consolo. E pela segunda vez a vida provou ser melhor que o aborto. Quem quase cabe na minha mão agora é ela. E entre risos e choros no pé da cama, entendi o tanto de mulher que havia na minha mãe.
 
Quando a gente se casa, a maternidade surpreende as nossas mães novamente. Isabela engravidou e ela vive a por nomes nos gêmeos, vindicando direito sobre o útero alheio.

- Sua mãe não tem juízo né Igor? Jacinto é lá nome pra por em criança?! E o outro ainda, meu Deus! - “Jacitário”.
- Eu acho que “Jacinto” era o nome do papai, mas em fim... Tu fica contrariando ela quando diz que é feio. Deixa ela ficar falando. Depois que os gêmeos nascer à gente inventa qualquer coisa.

Os gêmeos não foram fortes o suficiente para sobreviver a um útero sem estrelas. Sem cores e olhos descendentes, recobro minhas atenções agora com o divórcio, que nos fez mãe e filho pela terceira vez. Acho que agora firmo eternidade com esta graça: me basta apenas ser filho!
 
Tomo a estrela da penteadeira nas mãos e coloco sobre as dela. Ela finge sorrir, virando-se a um dos cantos da parede. As maternidades se perpassaram. As cinco letras são quase invisíveis, mas ainda se encontram nas mesmas pontas que um dia fez da minha mãe filha. Hoje ela me faz filho, filho do seu ventre, filho das estrelas...