Retalhos de vida


 
Genoveva não conseguia acreditar que aquela era sua festa de 90 anos, nunca  imaginou que viveria tanto, pois era a mais raquítica dos irmãos. A semana tinha sido cansativa e, especialmente naquela noite, estava saudosista,  pensativa e distante, embora fosse uma pessoa muito alegre, normalmente.

Os anos a conveceram que família "só serve pra brigar e tirar foto", mas nos últimos dias percebeu ainda mais a veracidade de tal afirmação irônica. Foi uma semana de muitas brigas entres seus familiares, as questões latentes não resolvidas, emergiram todas em forma de "picuinhas", indo desde a elaboração da lista dos convidados ao tipo de talheres a serem usados na festa. A lista foi complicada, pois todos os amigos que pretendia convidar foram excluídos por um motivo insuperável: estavam mortos.

Sentia-se como se fosse uma aberração da natureza por ainda estar viva, enquanto alguns dos seus filhos e sobrinhos, muito mais moços que ela, já tinha feito a jornada. Nesse instante, tocou nos cabelos endurecidos pelo "laquê "e lembrou-se que tinha passado a tarde num salão se arrumando, não entendia o porquê de pagar tão caro para colocarem uma "goma" nos cabelos que os deixavam duros parecendo um robô.

Mas, a tristeza que sentia era por causa da lembrança constante de sua irmã Gertrude. Talvez estivesse prestes a morrer, pois dizem que ficar lembrando de pessoas mortas é sinal que tem defunto novo na área, com certeza a próxima seria ela. Já era tempo, o remorso a corroía, relebrando como fora injusta com sua irmã.

Gertrude ficou viúva com 65 anos de idade, não teve filhos, pois o marido era infértil por causa de uma caxumba mal tratada, contudo, para não contrariá-lo, dizia a todos que o problema era com ela. Foi um casamento bem sucedido em amealhar riquezas, mas triste em sentimentos. Após a morte do marido,  Gertrude conheceu um jovem e promissor advogado, no auge dos seus 25 anos de idade, enquanto ela já beirava a casa dos 70 anos, com o qual se casou, apesar dos protestos de toda a família, que acusaram-na de louca, tentaram até mesmo interditá-la judicialmente.

Genoveva afastou-se da irmã, nunca mais a visitou, mesmo quando esteve com câncer. Nunca achou que Amarildo tenha se casado por amor, provavelmente tenha sido pelo dinheiro, pelos milhões em terras e gado que a irmã possuía. No entanto, que direito tinha de não aceitar as escolhas da irmã? Mesmo porque os protestos da família tinham o mesmo motivo - financeiro-, a verdade, era que quase ninguém se importava realmente com Gê, como carinhosamente a chamavam.

Por interesse ou não, Gê também se deu bem, pois teve um jovem atencioso e cuidadoso ao seu lado enquanto se recuperava da doença. Ele também se sacrificou, pois renunciou à paternidade e dedicou-se a aumentar o patrimônio da esposa e, ao contrário do imaginado, o casamento durou 33 anos, pois Gê viveu até os 103 anos de idade, sendo bem cuidada por ele.

Hoje, arrependia – se de não ter apoiado a irmã, agora sabia que é melhor ter um amor por interesse que a solidão gratuita da velhice. Uma pena que a sabedoria demore tanto a chegar e se chegar, pode ser tarde demais para alguns, pois já não dá mais tempo pra nada.

A festa continuava, já estava cansada com a sessão de fotos. Pediu para descansar um pouco. Olhou e viu uma amiga, uma das únicas que ainda estava viva, acompanhada pela filha. Dirigiu-se até ela para cumprimentá-la. A filha explicou-lhe logo que D. Marizia estava com um pouco de Alzheimer, o que foi percebido por todos logo em seguida, pois esta começou a reclamar que o padre estava demorando demais a começar o casamento, que a noiva já estava cansada.

Nesse momento, Genoveva sorriu e percebeu que ela estava no "lucro", pois ainda continuava firme e lúcida. Depois desse episódio se permitiu aproveitar a festa, colocou um sorriso sincero no rosto e deixou fluir, mas internamente, estava com o firme propósito de que iria procurar pelo viúvo da sua irmã brevemente, pois queria saber como ele estava.

No dia seguinte, Genoveva acordou cedo e foi caminhar como sempre fazia. Ao descer os degraus da calçada encontrou-se com seu vizinho Ernandes que já perguntou logo por que não tinha sido convidado para a festa, pois pretendia dar-lhe um bode de presente.

Genoveva já descansada e bem humorada disse-lhe:
_ Não deu pra convidar todos os amigos, mas não se preocupe que você será o primeiro convidado na minha festa de cem anos. Virou-se e continuou sua caminhada lentamente.

Ernandes ficou pensado: Que velha louca! Acha que vai viver mais 10 anos, nem ela e nem o bode! Eu hein! É cada coisa que escuto.


Excerto do livro "Retalhos", ainda não terminado.