Madalena não se cansava de servir a Judas. Ele saía toda tardezinha para encher a cara de cachaça e o corpo de carinhos estrangeiros. Ela sabia de todos os delitos do marido, mas não se cansava de lavar as roupas fedidas e borradas de batom de Judas. Nem se deixava abalar pelos prenúncios de vizinhos e alguns irmãos de fé que afirmavam, com todas as letras e signos, que Judas merecia levar um chute bem dado na região glútea. “Ora, Madalena. Ele não trabalha e bebe igual a um gambá (gambás bebem o quê, coitados?) e ainda fica se pegando com vadias por aí... Manda esse cara pastar de uma vez!”, diziam e rediziam o que Madalena não aceitava. Ela orava todo santo dia pela mudança do esposo e afirmava, sem uma gota de vacilo, que Judas deixaria de ser o Iscariotes para ser o outro, aquele meio irmão do Senhor.
Duas décadas se passaram e Judas continuava a rotina enquanto Madalena não desistia da sua promessa, embora o peso dos anos a levassem, uma vez ou outra, a refletir sobre a possibilidade de esquecer o impossível. Tudo corria sem sombra de alteração até que, numa madrugada solitária (como tantas outras), ela recebeu uma ligação imprevista. Correu para o IML a fim de reconhecer o corpo do marido. No caminho, enfrentou variadas angústias. Questionou a tudo. Ao mundo, a Deus, a si mesma. Sentiu-se afundando num mar revolto sem saída.
Embora irreconhecível, só podia ser ele. O crucifixo achado no pescoço do defunto era o mesmo. Um incêndio chacinara metade dos frequentadores de uma casa noturna que Judas frequentava. Todas as evidências se encaixavam no mundo lógico dos bombeiros e policiais, mas no de Madalena não. Como o Deus de tanta misericórdia a abandonaria de uma maneira tão covarde?
Madalena não conseguiu voltar para casa. Andou por tantas e tantas ruas até quase não haver pés disponíveis ao uso. Sentou-se num restaurante e, meio desorientada, pediu uma cerveja. Gostou da alegria no uso, por isso pediu outras até ser despachada no primeiro táxi que o dono do estabelecimento achou.
Trocando as pernas e as palavras, não sabe como, mas ela despertou na própria cama e, na cômoda ao lado, havia uma bandeja munida de alimentos para o desjejum. Meio abobalhada, ela coçou os olhos e se beliscou. Não podia ser! Ela jogou o lençol ao alto e correu à cozinha. Deu de cara com Judas. Muda, conferiu rapidamente as horas (no relógio de parede) eram seis e meia da manhã. Mas como se o marido dela nunca acordava antes das dez? Seria ele mesmo? Não, era o outro. Tanto que recebeu dele um afago no rosto e um abraço. Ela compreendeu o fato como algo, humanamente, além de qualquer cogitação.
Judas explicou o equívoco. Antes de entrar na boate, algo o incomodou. Sentiu um mal-estar que não era físico e, embora instigado pelo amigo que o acompanhava, desistiu da farra programada. Para não semear ressentimentos, Judas deu o crucifixo de estimação ao acompanhante que, corporalmente, muito se assemelhava a ele.