ANTES MAL ACOMPANHADO DO QUE SÓ
Como dizem: “O pior cego é quem não deseja ver”. Ribamar nunca entregou audição à vizinhança. Gente que, segundo ele, não tem nada melhor pra fazer senão atrapalhar a alegria dos outros. É bem verdade que Angélica sempre amou andar em roupas despreocupadas e acumular amigos do sexo oposto resvalando a boa chama do corpo aos interessados e, algumas vezes, às interessadas. Ribamar aprendeu um excelente mantra para qualquer drama moral que enfrentasse (sobretudo o conjugal): “A minha Angélica é um anjo de candura, não merece engolir tantas críticas...” Sussurrando-o durante a percepção das más intenções nos olhares do bairro: “Gente tola, não sabe que o que vale é o coração?”.
Ouvira acusações no barzinho da esquina, tanto que pilhara brigas e desavenças sem conta. Limitava-se ao trabalho e casa, justamente para dar esquiva às injustiças armadas contra sua pura Angélica.
Mas Ribamar vem mudando, desde quando aprendeu (nos sermões paroquianos) o valor inestimável do perdão. Sim, Ribamar anda descarrilando as rixas e diminuindo a ausência de diálogos com os antigos moradores. Tem alçado um: “Bom dia” aqui, outro: “Boa tarde” ali, aos poucos vem se tornando um homem melhor. Visa mostrar aos acusadores a verdade. Qual? A imaculada fidelidade da sua querida, tanto que resolve (num súbito) deixar a repartição mais cedo, sob a alegação de estar com dor de cabeça, para a adição de insuspeitas ao seu verdadeiro e recíproco amor.
Deixa o ônibus num raciocínio nublado. Não sabe se a antecipação ao lar lhe trará bons frutos... “Coração enganoso, eu te amaldiçoo!”, grita em pensamento, enquanto sopra e balança a cabeça. Moradores o observam de um modo risível, como prevendo um novo espetáculo. À passagem de Ribamar, um grosso de espectadores se forma atrás dele.
Ele não entende. Despreza as próprias dúvidas e o assanho geral pela razão que desconhece no caminho. Ribamar sabe em quem tem crido, mas desata a fechadura da porta como quem não deseja ser achado. Adentra o lar na ponta dos pés, até o quarto, de onde lhe chegam murmúrios inusitados. Ele chega a tocar na maçaneta da porta encostada, mas prefere olhar pela fresta. Vê Angélica nua, bem suada, e trepidando as carnes como alguém que busca uma intensa e verdadeira emoção. Ribamar não sabia que a sua Angélica era tão livre. O rosto dele muda do negro ao translúcido. Mesmo sem entender, absorve a própria alma atuando numa cena abjeta e provocante; suja e magnética; maligna e natural.
Ribamar esboça invadir o quarto algumas vezes, enquanto os ecos de prazer se intensificam e aliviam, como um ritual para o Nirvana por prazo indeterminado. Permanece de costas à parede, suando e imaginando Angélica se doando em inúmeras posições. Até que, cansado de tanto se abster ao melhor de sua querida, arreganha a porta e, mediante um olhar, expulsa o homem alto e musculoso da alcova. Raivoso, desembrulha a mulher dentre os lençóis. Como quem quase rasga as vestes pela ânsia do iminente fruto da nudez, Ribamar se despe e pula sobre Angélica que goza várias vezes na mente dele. Ao fim, devolve sua amada ao guarda-roupa. Uma companheira fiel, silenciosa, obediente. Excelente mulher de borracha.