A FACE DO DEMÔNIO
No ônibus. Confere o celular. Não pode chegar depois do marido, nem muito antes. Ainda não sabe como dará a notícia para ele. Desempregada há meses. Se disser a verdade, como justificará o dinheiro ganho. Muito mais do que quando usava a cabeça para produzir. Se pudesse trabalhar à noite, ganharia o dobro, quem sabe mais. Bem, para o dia basta. Quantos, nesse Brasil de meu Deus, ganham mil reais em quatro horas? Guarda o excesso no Banco para o esposo não desconfiar. Gasta (somente) o mesmo valor da remuneração de antes da demissão injusta. “Só porque não quis me deitar com ele?”. Helen sabe dos atributos que tem e agradece sempre por não ter um marido ciumento. Ela assiste a muitos casos nos noticiários policiais, mortas por alguns olhares ou intenções denunciadas, talvez inventadas por gente maldosa.
Desce do coletivo e caminha por algumas ruas, como sempre, verificando se há algum sinal do seu querido, Osmar, um homem trabalhador e dedicado ao casamento que abomina os comportamentos duvidosos ou ambíguos, bem como a pós-modernidade que ele bem conhece: é professor de filosofia e pastor.
Ela chega, finalmente. Na frente de casa, olha para os lados e suspira. Aproxima-se à porta e, com cautela, gira a chave na fechadura e abre a folha meio rangida. Entra. Aos poucos, aciona o interruptor para a iluminação dos cômodos. Primeiro a sala de estar. Depois o escritório, a varanda lateral, o banheiro, o quarto de hóspedes (Helen detesta o escuro) por último, o quarto de casal, mas dá de cara com Osmar sentado sobre a cama e vestido da mesma forma que saiu pela manhã. Ele a encara de um modo tenro. Ergue-se e a abraça. Helen não compreende:
“Amor, por que chegou e tava aqui, trancado no quarto?”. Ele responde que foi surpreendido por um problema de última hora e teve de voltar para casa. Pigarreia tirando a blusa social, dá as costas para Helen e entra no banheiro. Com pouco, ela ouve a água do chuveiro.
Na cozinha, preparando o sanduíche favorito do marido, algo rumina na mente de Helen. “Não, ele não está com o juízo perfeito. Algo estranho aconteceu.” Ouve a porta do banheiro se abrir. Por uma fala suave, convoca Osmar para o alimento. Ele recusa. Fecha-se no escritório.
Uma hora depois, nada. Helen não se cansa de gastar os passos de um a outro lado da casa. Pensa que... Será meu Deus? Não. Como ele? Alisa a testa suada e mexe nos longos cabelos morenos, como sempre faz quando está nervosa. Conta mais alguns minutos e se decide, bate na porta. Uma. Duas. Três vezes. Chama Osmar até gritar pela ausência de retorno. Bate... Uma voz estrangulada lhe dá sinal. Informa que vai abrir a porta.
“Amor, por quê?...”, Helen meio que rosna, mas de uma forma doce, enquanto observa, pela fresta da porta, Osmar destrancar a fechadura. Ele demora um pouco como se tivesse dificuldade para fazer algo tão comum ao seu dia a dia. Arreganha a porta e anda – de costas para Helen – até a extremidade oposta do cômodo e, sem aviso, estatela-se ao chão de costas e emitindo bruscos de corpo semelhantes aos dos epiléticos. Lança uma secreção branca e espumosa pela boca e nariz à medida que treme com mais força até paralisar. Aos berros, Helen usa o celular do marido (que caíra das mãos dele na crise) para pedir ajuda. Helen atropela a fala, mas tem a certeza de que seu esposo realmente ingeriu os comprimidos da cartela vazia sobre a mesa. Após solicitar a nervosa chegada ao SAMU, Helen nota mensagens e vídeos chamativos pelos títulos. Nunca mexeu nos privativos telefônicos do marido porque sempre confiou nele. Mas a atração lhe vem necessária e irresistível. Lê as trocas íntimas e assiste aos vídeos. Escuta, longe, alaridos da campainha e baques surdos como de socos à porta que vem abaixo. Abre um riso distante aos homens de farda e recebe um abraço do esposo que lhe limpa a saliva a escorrer pela boca sempre aberta: até chegar a hora em que algum novo enfermeiro a visitará. Entre um sono longo e outro, a palavra viva de seu bom marido não a abandona: “Deixai vir a mim as criancinhas, pois delas é o Reino de Deus.”