TIVICO: CRÔNICA DE UMA AMIZADE INTERROMPIDA
Etelvino Zulbarão Costa (de início aceitava bem o "Zulbarão". Mas, com o tempo, passou a fazer-lhe restrições. "Muito imponente", dizia. De forma que passei a tratá-lo somente pelo apelido ganho em família: Tivico).
Conhecemo-nos no primeiro dia de aulas de 1968. A partir de então, tornamo-nos grandes amigos. Tínhamos a mesma idade, catorze anos, mas eu era muito confinado à minha família, enquanto ele era um menino mais livre, devido ao relacionamento mais franco que havia em seu ambiente familiar.
Tal era seu desembaraço e a facilidade com se comunicava, que meus pais resolveram afrouxar-me um pouco as rédeas, mas à condição de que não me apartasse do Tivico.
Íamos a todas as festinhas que havia pelos arredores, onde o recebiam (e a essa altura, a mim também) com muita euforia. A turminha o curtia paca! Foi daí, inclusive, que pintou a oportunidade para o meu primeiro namorico. E com uma mina mais velha que eu dois anos! Mas isso não vem ao caso, agora.
Foi o Tivico, também, quem me ensinou a encarar com mais seriedade os livros. "Tá na hora de largar os gibis, cara! Tenho um passatempo muito importante para você, lá em casa. Uns bons livros! Quero que leia... Unzinho que seja. Vou ensiná-lo a identificar os melhores livros, você vai ver". Gostei. E tanto gostei, que consegui impressioná-lo: em pouco mais de um ano, li um terço de sua biblioteca, composta de uns quatrocentos volumes.
Mas Tivico, além de grande leitor, também escrevia umas coisinhas, como dizia. E eu, seu amigo predileto, desfrutava o privilégio de apreciar, fresquinha, a sua literatice - termo que ele mesmo usava em relação ao que escrevia.
Na Primavera de 1971, inesperadamente, Tivico foi levado de nossa cidadezinha do interior para Porto Alegre, de onde voltou após dois meses, muito abatido, embora esforçando-se para disfarçar.
Uns dias depois, chamou-me para um particular:
- José, você tem sido um amigo leal. Acho que posso contar com você...
- Claro, claro...
- Bem, estou batendo bielas (seu pai tinha uma oficina mecânica). Estou com leucemia. Estágio muito avançado.
Falou com tanta naturalidade, tanta frieza que pensei que estava brincando.
- Pois bem - prosseguiu -, sei que posso contar com sua discrição. Não quero que isso se espalhe entre nossos amigos. Seria muito penoso. Melhor esperar o momento mais oportuno, não acha?
- Tudo bem... Você que sabe - consegui balbuciar.
- Coragem, cara! Você sabe que o tenho em alta consideração. E é isso que importa agora.
- Não entendo como você pode falar de seu problema como se nem fosse com você!
- Além da literatura e da filosofia, contei com o auxílio de uma ótima psicóloga, em Porto Alegre. E meu diálogo com a morte não é de agora.
Ficamos a nos fitar, por longos minutos, sem nada dizer. Depois levou-me à biblioteca, onde entregou-me um pacote de cadernos.
- Quero que os guarde com cuidado. Está aí toda a minha literatice. Inclusive alguns contos premiados. Um dia, quem sabe, escritor, você me honre com alguma citação.
- Mas, Tivico - retruquei -, sua família...
- Nada disso - cortou -. Estou deixando a biblioteca para Aninha, minha única irmã. Isso aí só você, até hoje, soube valorizar. Ninguém melhor, portanto, para guardar a pouca lembrança que posso deixar.
Notei que uma lágrima acanhada deslizava em seu rosto. Aproximei-me silencioso, pousei uma mão em seu ombro e, com a palma da outra, limpei-lhe da face aquela gota de emoção.
No início do Verão (andava ainda um cheiro de flores no ar), eu vislumbrava, através de uma atmosfera acinzentada, muitos reflexos de para-brisas sob o solzinho fraco do fim da tarde. Depois, o sino repicou na capelinha do campo santo e eu fiquei parado, com uma grande sensação de vazio, que durou algumas semanas, e que se repete toda vez que parte um ente querido.