A cachaça e a vingança

Dizem que o prazer e o ódio são duas linhas tênues que podem ser confundidos e se parecem com o sabor de um vinho em um cálice, ou até mesmo uma cachaça. Gosto mais do exemplo da cachaça porque ele ilustra bem e é a causa de toda essa história. Umas das minhas paixões na época de garoto como a de muitos brasileiros é o futebol, paixão andava lado a lado com meu povo em minha terra natal, a Bahia. Vi os grandes craques da bola em campo jogando que marcaram história, melhores até mesmo do que muitos jogadores de sucesso atualmente. E no meio de tanta euforia causada pelo futebol em tempos de Copa do Mundo outro personagem eclipsou as atenções de toda a viela onde vivi parte de minha vida. Lembro até hoje daquele sujeito, daquele cenho assustador, da altivez de um homem que colocava qualquer cabra para correr, todos da vizinhança o temiam, era a própria encarnação do terror que suplantava de seus olhos. Não recordo do nome, apenas da sua alcunha Golias em referência ao personagem bíblico tão aclamado. A coragem e a força externa não eram somente características de Golias, a humilhação e a tirania que ele impunha as pessoas era outro fator que o tornava ainda mais temido. Naquele ano inesquecível para a nossa nação em 1970 durante um jogo da Copa lá estava Golias no bar com aquele olhar atemorizante que até parecia desafiar o primeiro que ousasse o encarar, todos o cumprimentaram e oferecem as melhores bebidas para acompanhar o jogo. No meio a tanta balburdia se encontrava um rapaz esguio, taciturno, um jovem diferente dos padrões daquele tempo, seu jeito introvertido fazia com que todos o julgassem, em suma era um rapaz que pelos seus costumes atraía o escárnio da vizinhança. Nesse dia ele chegou ao bar e se sentou em um canto afastado da balbúrdia dos demais, era quase esquecido pelas pessoas em todo lugar que frequentava, mas eu jamais esquecerei o nome dele e o que ele fez, seu nome é Igor. Conhecia o rapaz apenas de vista era da viela e em algumas ocasiões frequentou festas em que estava. Igor estava como o habitual calado em seu canto para assistir ao jogo no bar, mas ao se dar conta de sua presença quase esquecida pelos demais, Golias se aproximou, puxou uma cadeira e se sentou ao seu lado e diz:

_Veja só se não é o garoto todo certinho que anda como uma árvore fincada pelos cantos, que bom de encontrar em uma ocasião especial meu amigo, gostei de encontra-lo aqui e hoje para fazê-lo virar homem de verdade.

Ao dizer essas palavras, Golias pegou o copo de cachaça e aproximou o objeto até Igor e disse em seguida:

_Toma essa cachaça, quero ver você virar de um trago só.

Meio encalistrado com o pedido, Igor recua e se limita a dizer:

_Desculpa, mas eu não bebo.

_Então eu faço um desafio, se sair gol da seleção brasileira você beberá a cachaça toda.

O jogo começou, a cada narração e chance de gol criada, a expectativa aumentada, até que a tão esperada hora e o grito entalado em milhares de gargantas saiu através dos pés dos craques daquela seleção quase imbatível. Golias não se esqueceu da promessa que fez a Igor e no momento do gol do Brasil, ele pegou o copo e disse incisivamente:

_Beba logo essa cachaça!

_Eu não bebo.

_Não bebe não é mesmo?

Nesse momento Golias joga a cachaça em Igor que fica sem nenhuma reação e todos os olhares se voltaram para cena para saber se haveria revide ou se então o ofendido seria um Davi e acabasse com a valentia de uma vez daquele sujeito. Alguns segundos passaram e olhares atônitos fitavam a cena e para a surpresa de todos, Igor não reagiu apesar do semblante de ódio que carregava naquele instante, ele se limitou a limpar a roupa molhada pela cachaça, virou as costas e se retirou do bar sem dizer nada. Apesar de muitos pensarem que Igor pudesse revidar, o físico dele e de Golias eram desiguais, mas o silêncio dele e o cenho eram sinais do presságio de eventos sísmicos que estavam por vir. Quando esse episódio ocorreu Igor era um jovem de dezessete anos apenas e desde então fiquei durante dez anos sem vê-lo pelas ruas do bairro, nem sinal de existência havia de Igor, simplesmente evitava o contato com as pessoas e evitava aparecer em público. Nesses dez anos um pouco antes de completar os seus vinte e sete anos eu encontrei o no evento da festa da padroeira, em meados dos anos 80. Lá estava Igor com os cabelos mais longos e a aparência física continuava semelhante, com exceção, claro do cabelo que ele deixou crescer. Permaneceu apesar dos anos com seu jeito taciturno, as únicas palavras que deixou escapar nessa ocasião me fizeram prever o presságio que estava por vir desde o dia em que foi humilhado em público há exatos dez anos atrás. Aquela frase Igor disse para um padre que encontrei durante ao evento ao dizer:

_Vim rezar e falar com nossa Senhora sobre uma mágoa antiga que tenho aqui dentro.

Ao dizer isso, Igor apontou o dedo indicador ao lado esquerdo do peito e não disse mais nada durante todo o evento. Só o encontrei novamente naquele mesmo ano numa grande festa que meus familiares organizaram na minha casa, toda a vizinhança estava lá reunida, confraternizando e se divertindo, o clima de alegria se fazia presente igual a dia de jogo do Brasil naquele tempo. E lá estava o dedo do destino colocando mais uma vez naquela festa Golias e Igor. O jovem de agora vinte e sete anos lá estava com aquele mesmo olhar inescrutável, frio de quem está procurando o seu alvo a todo o momento. Igor perguntava a todos os presentes na festa que encontrava sobre o paradeiro de seu algoz chamando pelo verdadeiro nome o sujeito que o humilhou ao invés de sua tão conhecida alcunha. Um dos convidados apontou o local onde Golias se encontrava naquele instante, Igor então foi até lá e ao encontrar o sujeito que atirou cachaça na sua cara há dez anos, olhou em seus olhos sacou um cutelo e diz:

_Lembra-se de mim? Sou o jovem que há dez anos passados você atirou cachaça na cara durante um jogo da copa em um bar.

Igor disse apenas essas palavras e sem esperar a reação de Golias, desferiu diversos golpes com o cutelo que carregava em seu algoz e sumiu em disparada sem deixar nenhum vestígio. Depois dessa cena nunca mais ninguém o viu nem se soube do paradeiro do jovem que fugiu da Bahia para não ser preso, e quanto a Golias, bem por mais incrível que pareça apesar de receber tantos golpes, conseguiu sobreviver ao atentado, me lembro de seu olhar atônito segurando o local ferido próximo dos rins. Todos os presentes naquela festa se mobilizaram para leva-lo para um hospital mais próximo o mais rápido possível para evitar que o pior ocorresse. Horas mais tarde, eu e toda minha família tivemos a noticia que tudo ocorreu bem e os médicos conseguiram aplicar pontos no local cortado pelo cutelo sem maiores complicações, depois dessa noticia o maior trabalho foi limpar todo o sangue derramado em minha casa depois da facada, era um mar de sangue, nunca vi nada igual parecia algo bíblico como uma das pragas que atingiu o antigo Egito e transformou o Nilo em sangue. Após o ocorrido um novo Golias surgiu, mais pacato, nunca mais se teve noticias de uma confusão que ele se meteu, aquele que já foi um dia destemido, presenciei diversas brigas durante a madrugada de bandos e aquele homem partindo pra cima de quatro, cinco cabras e nunca o vi apanhar em nenhuma briga, pois depois da facada, quando ele via algum principio de confusão, Golias pegava a motocicleta que tinha e se mandava, e não poderia deixar de citar também o fato de que além de não caçar mais encrencas, Golias nunca mais jogou cachaça e nem humilhou mais ninguém depois do episódio com Igor. Após terminar a narrativa da história de Igor e Golias, o jovem Augusto ouvia atentamente cada palavra dita por Afonso, o senhor narrador personagem dessa história ocorrida nas décadas de 70 e 80. Após o termino da narrativa, Augusto disse muito surpreso com o desfecho:

_Poxa senhor Afonso, que história mais intrigante! E quem diria tudo por causa de uma cachaça e de futebol, cada dia eu me surpreendo com o mundo e as pessoas!

Afonso sorriu e disse:

_Pois é jovem, muitas pessoas tem a mesma reação de você, de surpresa quando ouvem essa história que conto a elas nesse prédio histórico passam diversas pessoas buscando oportunidades de emprego, muitos jovens como você aqui vejo e conto essa história para todos enquanto aguardam assim como você hoje pela entrevista Augusto, muitos não acreditam que vivenciei tudo isso por ser um simples porteiro, mas acredite meu caro, vi tudo com meus próprios olhos esses mundos pequenos que se cruzam como luzes de faróis como uma linha tênue que difere o prazer e o ódio que andam juntos, e como digo aos jovens que ouvem essa história, não busque o prazer em excesso, afinal você nunca sabe quando o prazer se transforma em ódio assim como não sabemos quando a tempestade vai surpreender os dias pacatos com sua fúria indelével.

Lucas Santana
Enviado por Lucas Santana em 24/04/2018
Código do texto: T6317897
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