Cenas do bar - Wilsinho, o feio.
O novo garçom tem a cara do Wilsinho.
Eu não sei se feiúra mata, se sim, Wilsinho deve ter morrido faz muito tempo, assim como não terá vida longa esse garçom à minha frente.
- Vai mais um patrão?
- Sem espuma, por favor.
Mulher muito bonita quase sempre é cruel.
Maria das Dores, apesar desse nome horripilante, era linda da cabeça aos pés.
Vá lá, omitindo a bunda ligeiramente achatada, mas quem era eu para ficar preso a detalhes naquele fim de março de 1984, na quadra de esportes durante o recreio, momento sublime no qual ela dirigiu seus imensos olhos verdes na minha direção.
- Oi, você é o Juvenal?
Tive vontade de responder sobre o erro, meu nome é Vladimir de La Mancha, mas não podia perder a oportunidade.
Além dos olhos verdes do tamanho das estrelas, Maria das Dores tinha a voz de veludo.
Fiquei Juvenal mesmo.
- Sim, Juvenal, eu sou o Juvenal...
- Então Juvenal, eu queria saber se você topa fazer parte do nosso grupo para o trabalho de desenho geométrico.
Até hoje, passados tantos anos, não consigo compreender porque raios existia desenho geométrico no curso de biologia da Fucmat.
Estranhei o convite, eu era pé rapado, esquisito, só me sentia bem perto do Wilsinho, que era mais feio do que eu; e de desenho, até hoje, só sei desenhar o sol e umas nuvens bêbadas.
Geometria, para mim, era um palavrão e nada mais.
- Claro que aceito! Respondi após a terceira profunda respirada.
Ela usava uma blusa de riscado, azul e branco, bastante espaçosa.
Acho, não posso garantir, rolou uma lágrima quente de contentamento no canto do meu olho.
Levada pelo contentamento, Maria das Dores abriu um sorriso de metal, ela usava aparelho nos dentes já naqueles tempos, abriu os braços para cima, deixando aparecer os cabelinhos das axilas, visão ao mesmo tempo divina, inquietante e apavorante.
Gritou sem se constranger:
- Olha Deise, o Jacinto aceitou fazer o trabalho com a gente.
Deise era uma menina baixinha, usava sempre vermelho, tinha cachinhos e vivia pregada na Das Dores.
Era a cara da Luluzinha, famosa personagem dos gibis daqueles tempos, veio correndo para o nosso lado, mostrando uma cara tão aberta que pude ver pedaços da garganta.
Claro que notei a troca do nome, mas pra quem já havia aceitado ser Juvenal, não aborrecia nem um pouco ser o Jacinto.
Foi quando o Wilsinho se aproximou, no andar quase dançado, ajeitando os óculos fundo de garrafa e alisando os cabelos com as pontas dos dedos pouco antes encharcados pelo próprio cuspe.
Apertou minha mão olhando para as meninas, mais precisamente para Das Dores.
Preciso aqui abrir um parênteses para explicar melhor o Wilsinho: ele era horrível, tipo do feio cego, não enxergava a própria feiúra, pelo contrário, se achava bonito.
Além de pentear os cabelos com cuspe, ficava erguendo a abaixando as grossas sobrancelhas, em movimentos rápidos e irritantes.
Das Dores fez cara de nojo, Luluzinha continuou com as vistas pregadas em mim.
Achei estranho...
- E ai Vladimir, quais são as novas? Falou o Wilsinho, sem me dar tempo de explicar que naquele instante eu era o Juvenal.
Das dores levou um susto:
- Seu nome é Vladimir?
O olhar de desapontamento de uma mulher bonita é um dos mais terríveis venenos da natureza, mata aos poucos, sem encostar.
. Quantas dores pode provocar uma Maria bonita?
- Sim... Respondi meio gaguejante e senti um leve tremor nas pernas.
Eu tinha muito disso naquela época, tremia por qualquer coisa e colocava a culpa na virgindade.
Sim, eu era virgem em 1984.
O desapontamento marcado no rosto da musa dos olhos verdes não conseguiu retirar o olhar de Luluzinha para mim.
Me entupi de velho e bom orgulho e resolvi falar:
- Sim, meu nome é Vladimir de La Mancha. Algum problema?
Ela sorriu, um tanto sem jeito.
- É que eu pensei que você fosse o Juvenal...
- Juvenal é do quinto semestre e sabe tudo de desenho geométrico. Revelou Luluzinha, finalmente retirando aqueles olhos pequenos do brilho inquietante sobre mim.
A musa dos baitas olhos verdes a apanhou pelos braços, se retirando sem olhar para trás.
- Vamos Deise, a aula já vai começar.
Eu ia perguntar sobre o trabalho, se ainda estava de pé o convite, mas Wilsinho me atropelou:
- Viu o jeito que ela olhava para mim?
- Qual? Brinquei.
- A zoiúda, é claro.
- Wilsinho, caia na real, você é feio pra caralho!
Ele ergueu os óculos e mexeu as sobrancelhas bem perto de mim.
- Cale-se, você é virgem, não entende nada de mulheres, nem percebeu que a baixinha queria o seu colo. A gente podia combinar, eu fico com a gostosona e você com aquele piolho de galinha.
- Wilsinho, creia, ela nunca vai te dar bola!
- Seu rabo! Tá no papo. Eu sou amado, e você, um cão danado.
Ainda guardo na retina o olhar de triunfo do Wilsinho, a dor da saudade atravessada na lembrança de momento, aguda, dolorida pelo amigo que nunca mais reencontrei.
Bebo um último gole, aceno para o garçom, peço mais um chope, ele logo caminha até mim, um jeito de andar quase rebolado, a magreza infindável, o par de sobrancelhas grossas e vivas, atiçando o passado. Um gole, depois outro, o novo garçom permanece à minha frente, como num desafio, cada vez mais idêntico ao Wilsinho, chego a perceber seu par de sobrancelhas em movimentos ligeiros, para cima e para baixo.
- Muito obrigado – eu digo e tomo em três goladas o copo todo. Pago com dinheiro e sorrio para o novo garçom.
- Fique com o troco e leve um abraço ao seu pai.
Ele então me olhou surpreso:
- Você conhece o meu pai?
- O Wilsinho? Sim, desde os tempos que nós dois éramos virgens.
Saí do bar sem esperar respostas, preferindo o gosto da dúvida, no peito ardendo a esperança que o meu antigo amigo ainda esteja vivo, apanhado pelo sopro do vento lá de fora, aos poucos voltando à realidade e permitindo o arroto de chope explodir, engolindo figuras do passado.