MARINA
Marina pegou a bolsa e foi trabalhar. Estava cansada de estrelas, das estradas, dos caminhos nebulosos que guiavam sua vida: suor, cansaço, aço, cidade grande, nuvens faiscantes... O menino do quarto ao lado chorara a noite toda, feito pingo de chuva nos tonéis sem água, ferindo os ouvidos da madrugada, o silêncio podre, os seus ouvidos. Toc, toc, toc... Oi, Dona Ceça, que houve com Pedrinho? Menina Marina, fome! Desde ontem à noite! Que é que posso fazer? Aquele condenado me deixou por aquela vagabunda e num deixou nada pra gente! Filho do diabo! Deixe estar, Dona Ceça! Garanto que Pedrinho nunca mais - ou por um bom tempo - num vai mais chorar, não. Não de fome! Garanto! Trouxe um pouquinho de leite. Dê a ele. Vai aliviar a fome do bichinho.
As entranhas de Marina estavam em polvorosa com falta de alguma coisa e estavam doendo que só remorso. Imagina aquele pobre menino! Uma criança morrendo de fome! Tronchura da gôta! Desceu as escadas daquilo que ela chamava de morada: um monte de cimento envelhecido, portas esmaecidas pelo tempo, janelas feito pregas de prostituta... Dia bonito, gente passando, devorando ela com os olhos, com a boca. Sabia que deixava os homens feito lobos. As nádegas pulando da calça comprida de jeans; James Deans modernos em motos sacaroteando por ruas abstêmias de alegria, de paz, de Deus. Os olhos do patrão devorando-a, desnudando-a feito Picasso com suas modelos, pincel abstrato e tons cubísticos nas veias dele, devorando-a. Ela jurara que Pedrinho, por um bom tempo, não choraria. Encheu os olhos de água quando se lembrou de sua mãe, pura e brejeira, matuta sem maldade no coração e nas ações. Cidade grande é um perigo, filha! Cuidado com os homens de lá. São umas bestas-fera querendo devorar menina bonita feito você! Ela citava sempre o versículo bíblico da prostituta que fora perdoada por Cristo. Peca não, filha! Se a tentação vier, desvia teu pensamento dela, fica de joelhos e ora. Manda ela pros cafundós dos infernos!
No ônibus atolado de gente ela sentia as dores e as mazelas do mundo, daquela cidade: caras murchas, caras raivosas, caras desconfiadas, caras com cara de medo, com cara de matagal incendiado; sacolejos de caranguejo, o sol dizimando as entranhas daqueles ferros retorcidos, enferrujados; Marina sacolejando as ancas, procurando onde se segurar... Um rádio semitonado vomitando diarréias acústicas, criança berrando... Seus olhos olharam os olhos daquele rapaz que estava sentado perto da janela do ônibus. Ele lia uma Bíblia e seu rosto agradável e saudável fez um convite para ela se sentar. Levantou-se e ofereceu a ela o lugar. Agradeceu com o olhar. O cheiro dele entranhou-se nas narinas de Marina e atazanou seu desejo. Tremedeira nas mãos, nos joelhos, desviou os olhos. Por que ela não arranjava um homem como aquele? Taí alguém que sua mãe, certamente, aprovaria. Tinha um imã pra homem troncho, pra ruas descalças, sem luas, sem sóis. Ao redor das mesas das mansões havia restos de comida, havia restos de almas, esperanças liliputianas, bafejos de estultícia, Ivans Karamazovs emoldurando lareiras e alcovas rasas. E a soma dos quadrados desses catetos era o panorama urbano de concretos e de aços disformes.
Ai, Senhor! Lá está ele. Me enquadrando e me medindo toda! Mas fizera a promessa e iria cumpri-la! Como no primeiro dia, ele veio até ela sem tirar os olhos dela. “Sabes o que tenho passado por ti? Sabes a vernissage em que expus teu corpo? Tenho pintado tua boca, teus seios, tuas mãos com pincel de Miró em meus devaneios noturnos! Sou escultor em teu modelo carnal e não estás nem aí? “
Vixe! Por que ele vinha com aquele palavreado de desaparafusado mental? E ela sabia o que isso queria dizer? Sabia que ele a queria e que a teria. Tinha-o como sua mãe tinha o novelo de lã enquanto estava bordando, criando formas, parindo arte. Os olhos dele perscrutavam-lhe a alma e o cenho tremia. Ela sorriu. Cristo dissera àquela mulher para nunca mais pecar. Pecaria mais, não. Só desta vez. O tempo lambia os costados da necessidade e exigia improviso. E o tempo era amante de Marina.