1036-A VIZINHA SAFADINHA -

NEUZA A VIZINHA SAFADINHA

Ela estava me esperando, defronte ao portão de minha casa, hoje, ás sete da manhã. Neuza, a vizinha sofredora.Estava em trajes de dormir: calças largas, parecendo bombachas, amarradas no tornozelo, chinelas surradas e paletó de lã fossa. O cabelo branco mal amarrado em um coque na nuca. Aparenta ter oitenta anos.

Quando fui colocar o saco de lixo na frente do meu portão, ela me abordou tempestivamente, dizendo:

— Seu Antonio, eu não sou o que o senhor disse outro dia aqui na rua... SAFADINHA.

Levei um susto.

— Como é que é?

— É sim, seu Antonio. O senhor falou ai na frente do meu portão... Safadinha. Eu não sou isso não.

Fiquei por instantes sem saber o que dizer. Ela ali na minha frente, as mão cruzadas sobre o peito em atitude angelical, os olhos miudinhos, escuros e a boca pequena, que, contudo, não escondia os dentes quebrados e a dentadura torta.

— Que é isso, Neuza? Que é que você tá falando?

— Não sou safadinha, não senhor...

— Pelo amor de Deus, Neuza, eu jamais falei, falaria uma coisa dessas. Nem de você nem de ninguém. Você deve estar enganada.

— Foi o senhor mesmo...

— Neuza, Neuza, eu nunca falei isso...

— Falou sim, que eu ouvi. Tá todo mundo com raiva de mim. O Pelé...

— Quem é Pelé?

— O catador de papelão. Os vizinhos da frente também tão com raiva de mim...

— Espera aí. Vamos ao que interessa. Eu afirmo que nunca falei, jamais, isto de você. Nem isto nem nada, que eu tenho o maior carinho com você e sua família. Nunca falei.

— Pois é, o Nilton meu irmão também não gostou e...

— Pelo amor de Deus, Neuza, você se enganou. Ouviu mal, Neuza. Aliás, nunca falei coisa alguma sobre você, Neuza, nem aqui na rua nem em lugar nenhum.

Ela meu olhava firme, mas seus olhos inspiravam piedade. Deve ter sonhado ou está caducando, pensei.

Eu disse:

— Olha, eu me recuso a aceitar esta acusação. Você me conhece. Somos vizinhos á quase cinquenta anos. Não vou aceitar isso.

Virei-lhe as costas, enquanto ela também entrava pelo estreito portão lateral de sua casa.

Me sentia desestabilizado. Enny estava no banheiro, penteando os cabelos. Contei-lhe o ocorrido.

— Coitada da Neuza. Deve estar com complexo de perseguição.

— Pode ser. Mas eu estou completamente... arrasado... com essa acusação!

— Fique calmo, meu bem.

— Acho que vou falar com o Nilton. O irmão tem de saber que ela está... maluca... caduca, sei lá!

— Não, agora não. Ainda é muito cedo, Aliás, ela nem tem o costume de levantar tão cedo. Eu sei que ela levanta tarde, já me falou...

— Que coisa sem pé nem cabeça! — eu disse.

Enny terminou de se pentear e foi para o quarto. Segui-a. sentei-me na cama, ainda sem pensar direito no que fazer. Ela comentou:

— Somos os únicos vizinhos que ainda se dá bem com ela. Já brigou com todo mundo, com o pessoal do Supermercado da esquina, com catador de papelão. Com os pedreiros que trabalham nas demolições da frente, do outro lado da rua... e agora com você!

De fato, o histórico de brigas, implicações e discussões com o pessoal do supermercado já rendeu muita coisa. Até queixa na policia ela já deu, por conta do barulho que os pedreiros fazem quando reformam ou ampliam alguma parte do edifício do mercado. Ela aluga o ouvido das pessoas, com queixas e reclamações.

O irmão é aposentado. Solteiro, mais de 60 anos. Foi chaveiro durante a vida toda com oficina no Edifício Maleta, no centro de Belo Horizonte e a gente pouco se vê. Calado, só nos cumprimentamos eventualmente, nas poucas vezes em que nos encontramos. Também é sistemático. Tem dois carros velhos na garagem, enferrujando-se e com as borrachas soltando-se das molduras. Empoeirados. Estragados.

Neuza também é solteira. Toma conta da irmã Licinha, doente, cujas condições eu não conheço, pois não as visito. Só sei que de vez em quando a ambulância a leva para o hospital, onde, segundo Neuza, é tudo sujo, ruim, péssimo atendimento, ela brigando com enfermeiras e médicos — segundo ela mesma faz questão de contar.

A casa está sempre fechada, pelo medo patológico de ladrões. Não tem empregada nem faxineira. Quando alguém aperta a campainha no portão, abre-se uma fresta na pequena janela da porta, por onde o visitante é previamente observado, antes de ser atendido ou sumariamente despedido. .

Sempre a cumprimento e a tratei com educação e até mesmo carinho, quando ela me pega de jeito para falar de suas mazelas.

Agora, me acusar de que a chamei de SAFADINHA. é coisa de louca ou caduca.

Fato real ocorrido em 28.11.2017.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 28 de novembro de 2017.

Conto # 1’036 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/04/2018
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