Ravenala estava determinada a não escrever nenhum capítulo sobre o baile da Lapa. Falar mal de futebol, carnaval e música funk é colocar uma corda no pescoço e os pés no cadafalso; cair no esquecimento ou ter seu livro jogado na lixeira como as páginas policiais do jornal que Robert comprava. Muitos espectadores querem ver a beleza das cores que passam pelo sambódromo, outros que o carro alegórico estoure e os foliões voem aos pedaços. Ela não gostava de preconceitos. Tinha conceitos de beleza, conceitos do Bem e do Mal. Conceito sobre a coisa de seus desejos, e, aos poucos, sentia-se imaculada, como nos primeiros dias de Eva no paraíso. Por seu turno, o padre Davi também se sentia na pele de Adão, antes de morder a maçã do pecado. Dera nome a muitas crianças, derramando água da pia batismal sobre suas cabeças, mas não dera nome a nenhum filho de suas entranhas. O poder de multiplicação da espécie que Deus deu ao homem foi pelo padre elevado à categoria de voto. Voto de castidade. Era preciso decidir-se antes que os anos avançassem muito. Tinha mais de quarenta.
Por que não agora?
Voltou o Anjo Negro a pedir permissão a Deus para tentar o padre:
Vinte anos de sacerdócio. Viagens sofridas, e lida com batizados, que continuavam na vida pagã? Gente que conversa durante a homilia como se comprasse farinha no mercado público. O padre não podia interromper a celebração, por causa de uma criança que aos berros chamava a atenção de uma numerosa assembleia, principalmente, dos pais. Muito menos por causa de um cão que ladra, insistentemente, perturbando o ritual romano. Estava o padre no momento de maior expressão da fé cristã: A consagração. “Corações ao Alto!” E o povo responde: ‘Nosso coração está em Deus’. Na verdade, muitos corações estão noutro lugar, menos ali na Jerusalém Celeste, quando o céu desce à terra ou Igreja se eleva ao céu. Outro cachorro desses que não perde uma missa, uiva. E o padre dá sequência à Liturgia Eucarística: Vereis o céu aberto e os anjos subindo e descendo sobre o filho do homem. Distraidamente, uma voz ecoa no meio da assembleia: ‘Amém’ e não era hora do amém. Dois mil anos de doutrina e o povo conversa na igreja, até na hora da elevação do Santíssimo... ‘Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.’ E enquanto beijava o altar, Davi viu a cena de Jesus expulsando os vendilhões do templo, o Mestre não chicoteava nenhum deles. Virava as mesas e soltava os animais, colocados à venda para serem dados em oferenda. Quanto tempo depois, vendilhões continuam a negociar na casa do Senhor como se estivessem numa feira-livre! Refez-se, e continuou a celebração. Davi se sentia como um pastor ferido, incapaz de conduzir o rebanho da casa de Jacó. Servia a Deus na esperança de que a Madre Igreja, não tardasse em permitir que os sacerdotes se casassem. ‘Por que não agora? Quanto tempo esperar ainda?’ Estava profundamente perturbado com a pergunta que Morgana fizera durante uma aula de religião no Marista: ‘É verdade que José de Alencar é filho de um padre?’ Teve vontade de dizer que o romancista brasileiro era filho do ex-padre José Martiniano de Alencar. Mas, sabia que padre, uma vez ordenado, mesmo perdendo as atribuições do ofício, nunca deixa de ser padre.
Fez um minuto de silêncio.
Beijou o altar da propiciação, e afastou pensamentos que lhe perturbavam a alma. Deu a bênção final, e ficou em adoração ao Santíssimo.
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Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."