Conto das terças-feiras – A bodega do seu Zé Mouco
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 27 de março de 2018
A bodega ou mercearia, até início da década de 1970, representou importante papel no abastecimento de gêneros alimentícios e de outras necessidades para os domicílios dos fortalezenses. Essa importância perdeu o seu valor com o aparecimento dos supermercados que, em Fortaleza ganhou a alcunha de “mercantil”, referência ao primeiro mercado surgido na cidade, na década de 1960, denominado Mercantil São José. Sua primeira loja foi estabelecida na Rua Pinto Madeira, no Bairro da Aldeota. Muitos moradores da cidade até hoje falam “vamos ao mercantil”, indistintamente para mercado, supermercado e, mais recentemente, hipermercado.
Antes da chegada do Mercantil São José, na Rua Pinto Madeira, esquina com a Rua Antônio Augusto, bem próximo a nossa residência, existia uma bodega de propriedade do seu José não sei das quantas, mais conhecido como Zé miolo, Zé mouco, Zé da bodega e outros depreciativos que não me recordo agora.
Essa bodega abastecia com secos & molhados as famílias que moravam nas suas imediações. Também vendia cachaça, querosene, fumo em rolo, produtos de limpeza e higiene, corda de sisal, velas à base de cera de carnaúba e outros produtos de interesse e uso do povo que a ela recorria. Aos mais conhecidos e classificados como bons pagadores, o seu Zé mouco facilitava o pagamento semanal ou mensal, com anotação em caderneta dos produtos adquiridos e respectivos preços. Era preciso ter cuidado, pois a mão de quem anotava podia escorregar e aumentar a quantidade dos produtos adquiridos. Nestes casos, era discussão na certa.
Seu Zé era um senhor magro, de aparência rançosa, isto é, vivia de cara fechada, reclamava de tudo e atendia mal a seus clientes. Muito trabalhador, em sua árdua batalha laboral de quase quinze horas diárias, era auxiliado por um parente, seu Chico, um magricelo nervoso e distraído. Estava, na ausência do proprietário da bodega, sempre a tirar um cochilo, mas era despertado pela dona Suzete, que todos sabiam ser irmã de seu Zé. Os maldosos diziam que ela era amancebada com o irmão. Ela não ficava na bodega, quase ninguém a via, mas ouvia seus gritos, vindos lá de dentro da casa, para tirar o sossego do seu Chico.
Dona Suzete era uma mulher enérgica, apesar do seu avantajado corpo, tinha dificuldade em andar, mas mesmo assim acordava cedo, fazia as refeições para o trio, ela, seu Zé e seu Chico, e ainda tomava conta da casa, uma extensão da bodega, e inspecionava as atividades do comércio deles. Também colocava para correr os adolescentes que apareciam à sua porta para atacar a sua condição “marital”.
Devido a sua localização, a bodega servia de abrigo para os que tomavam o ônibus na calçada da outra esquina, local geralmente sob sol ardente. Com três portas, duas para a Rua Antônio Augusto e uma para a Rua Pinto Madeira, e ainda, uma frondosa mangueira a fornecer agradável sombra, a bodega era um convite para ali esperar a condução que fazia o percurso Aldeota x Centro, trafegando pela Pinto Madeira. Nesta hora aumentava a comercialização de cigarros, bombons e até ovo cozido colorido. Tinha também aqueles que, logo pela manhã, antes de ir para o trabalho, saboreavam um ou dois goles da boa e destilada pinga, antes derramando na calçada o gole do santo. Os aficionados por apostas recorriam ao seu Chico para fazer uma fezinha no “jogo do bicho”.
A bodega de seu Zé Mouco era também ponto de referência da redondeza, local de encontro de muitos para tomar um cafezinho bem passado por dona Suzete, geralmente guardado em garrafa térmica. Das conversas da bodega também surgiam e se propagavam os boatos, comentados com avidez pelos moradores locais. Algumas pessoas iam por lá só para saber as novidades do dia. Saiam decepcionados quando não conseguiam arrancar assunto novo da boca de seu Chico, aquele que sempre estava atento para as futricas dos frequentadores habituais. Traições era o assunto mais requerido, e contado com discrição, geralmente junto ao ouvido do interpelante curioso.
A bodega do Zé Mouco não mais existe, mas, ainda hoje, algumas delas, em outros formatos, prestam serviços inestimáveis nas periferias das cidades e no atendimento aos grupos sociais de menor poder aquisitivo sem condições econômicas para consumir nos modernos shoppings ou supermercados existentes nos bairros. Nas pequenas cidades do interior as bodegas, ou vendas, também resistem ao tempo pelos mesmos motivos e porque a falta de transportes e a distância impedem a seus moradores gozar do acesso a tais benefícios.
No terreno da “nossa bodega” foram construídos dois belos edifícios de apartamentos, indicativos do dinamismo daquela região, anteriormente discreta, calma e despojada.