A PROFECIA QUE NÃO FIZ

Certo dia, no primeiro ano do século vinte e um, eu dava aulas de filosofia numa escola da periferia de São Paulo, numa dessas comunidades esquecidas do poder público. As casas ficavam penduradas numa colina, em nível superior ao da escola, que se situava no vale de um pequeno córrego poluído. As ruas, que desciam da colina em direção ao vale, se haviam transformado em valas de erosão. A quem as olhasse da escola, ou da elevação oposta, a visão era de um desses filmes de monstros japoneses. Como se um desses seres gigantescos tivesse sulcado a colina com suas poderosas garras! A desolação e a pobreza extrema eram as características mais marcantes dessa comunidade.

Minha aula, nesse dia, era sobre a autonomia do pensamento. De como o pensamento livre e autônomo podia libertar o indivíduo, ajudando-o a superar limites e a mudar a própria condição; de como a liberdade e a autonomia individual podem se disseminar pelo coletivo, transformando a vida de um bairro, de uma cidade, de um país!

A certa altura, um aluno que sempre assistia calado às minhas aulas, levantou o braço e disse:

- Posso falar, profe!

- Pode. Claro!

- Isso tudo aí que você falou é muito bonito, mas não passa de um monte de besteiras!

- Sim?! E por quê?

- Quer ver uma coisa? Quanto você ganha, profe?

- Bem, isso é algo que eu prefiro não revelar.

- Tá certo. Mas eu sei mais ou menos a merreca que você ganha! E você vem com esse papo de que estudar pode mudar o nosso destino. Eu tenho um primo que nem terminou o ensino fundamental. Você sabe quanto ele ganha?

- Não. E se você não me disser, vou continuar não sabendo.

- Pois nem ele sabe! Ganha (e gasta) tanto, que não tem noção de quanto.

- Puxa! E o que faz esse seu primo? Quantos anos ele tem?

- Ele tem vinte e três anos e puxa carros nos jardins.

- Como assim, puxa carros?

- Ele rouba carros sob encomenda. Um golzinho rende setecentos; um Vectra, mil e trezentos.

- Mas isso, além de ilegal, é muito perigoso!

- É nada! Eu mesmo, ano que vem, completo dezoito anos e vou morar e trabalhar com ele. Só não o faço ainda porque sou menor e minha mãe me obriga a vir à merda dessa escola. Já rolou juizado e tudo, por causa disso. Ano que vem eu chuto o balde!

Peguei o gancho e argumentei, estatisticamente , o quanto é incerta e curta a vida dos que se dedicam a esse tipo de atividade; de como é preferível observar as regras estabelecidas pelo estado; preservar nossa condição de cidadãos livres, etc. Mas ele rebateu:

- Não faço questão de viver muito. Quero viver bem, me divertir enquanto posso, ter dinheiro para comprar o melhor tênis, roupas de marca, comer e beber do melhor, ter as gatas que eu quiser!

A turma ouvia-o entre atônita e encantada. Quando ele terminou, houve até alguns aplausos. Olhei o relógio e vi que era hora de ir para outra sala. Nas aulas seguintes, retomei o assunto, mas com cada vez menos convicção.

No ano seguinte, vim para Manaus. Numa ida minha a São Paulo, em 2007, fui à referida escola, para pegar um documento de meu interesse, e a secretária me perguntou se eu lembrava do tal aluno. Respondi que sim. Então ela retirou da gaveta um jornal, datado de uns dois meses antes, abriu numa determinada página e me mandou ler.

Uma matéria de meia página, com foto e tudo, noticiava a morte do meu ex-aluno. Ele tentava arrombar um veículo, numa rua dos Jardins, quando o dono o flagrou, sacou um revólver e acertou-lhe dois tiros.

- O senhor profetizou isso, professor! - disse a secretária.

Não fiz nenhuma profecia, foi minha resposta. Apenas usei as estatísticas para alertar, a ele e à classe, dos riscos que correria quem escolhesse aquele caminho. Mas minhas ponderações foram inúteis. A filosofia, por mais que desça do pedestal e procure interagir com a realidade, parece irrelevante ante os apelos de um mundo cada vez mais hedonista, em que as pessoas querem tudo! E querem agora! O sentimento de quem ensina, ao constatar um fato dessa natureza, é um misto de tristeza e decepção.

José Luiz Barbosa de Oliveira
Enviado por José Luiz Barbosa de Oliveira em 25/03/2018
Reeditado em 29/05/2018
Código do texto: T6289884
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