IDAA
– Boa tarde a todos!
– Primeiramente, antes de iniciar meu relato, gostaria de esclarecer alguns pontos. Segundamente, gostaria de afirmar que estou aqui por livre e espontânea pressão. Terceiramente, meu nome é Cesar e tenho essa horrível mania de falar, falar e não falar nada.
As pessoas no círculo riram e, em uníssono, disseram: oi, César!
– Para mim é muito difícil falar de mim na primeira pessoa. Me sentiria muito mais confortável inventando um pseudônimo e narrando minha história com um distanciamento seguro. Mas não seria verdadeiro. Então estou aqui, eu, César Albuquerque, de coração aberto diante de vocês. Que fique claro que coração aberto não tem valor semântico de algo bom ou nobre para mim, pelo contrário: a sensação é a de expor uma ferida sangrenta diante de animais selvagens famintos.
César absorveu a reação das pessoas às suas palavras. Esperava distanciamento, rivalidade, desinteresse diante de suas palavras cuidadosa e ironicamente polidas. Ou ao menos que a maioria dos ouvintes se sentisse ofendida ao ser comparada com animais famintos.
Ao olhar para as faces genuinamente interessadas e encorajadoras, contudo, percebeu que seu arsenal de nada valia naquele campo de batalha. Não haveria clima de guerra. E isso, obviamente, era algo extremamente perigoso.
– Eu... – uma pausa. Sua polida, inabalável e impecável oratória o estava traindo. Sentia-se cada vez mais acuado. A pausa prolongou-se por intermináveis segundos. O líder do grupo, então, para seu desagrado, interveio dando um peteleco no silêncio marrento.
– César, você pode começar pelo início, pelo meio ou pelo fim. Não há uma ordem. Você pode, também, circular o ponto principal. Na medida em que formos avançando você se sentirá mais confiante para avançar ao núcleo...
Uma armadilha. O filho da puta havia lido todas as entrelinhas. César não precisava de direcionamento, não gostava de comer pelas beiradas ou de adiar o inevitável. A arapuca desarmou e suavemente o cobriu. Pisou na armadilha, sabendo exatamente o que estava fazendo.
– Quando eu tinha doze anos – o tom polidamente distante e educado foi para o espaço. Era agora alguém que declaradamente estava falando e fazendo algo que não queria. Alguém cujo tom de voz denunciava resignação: a pior das humilhações e a redenção das pessoas controladas e controladoras. Perdido na busca por palavras certas, deu-se conta de que, mais uma vez, fazia uma pausa. Era o empurrão decisivo.
– Quando eu tinha doze anos fui para a chácara dos meus tios com os meus pais. Sempre íamos para lá nos dias das mães e dos pais, natal e outros feriados. A família inteira se reunia. Muitos tios, tias, avós, primos e primas e vários agregados. Nessa vez apenas eu e meus pais fomos. Meu pai havia sido demitido da firma e queria relaxar.
Falou tudo tão rápido que precisou parar para tomar fôlego. Com os pulmões cheios novamente, continuou no mesmo tom apressado que beirava a histeria.
– Ir para lá era sempre um tédio. Não pelo motivo que vários de vocês achariam: naquela época não havia internet. Eu odiava ir para lá porque odiava estar perto dos parentes. Os comentários sobre crescimento, namoro, as apertadas de bochecha de tias fofuxas que diziam que eu estava virando moço me faziam sentir vontade de sair correndo...
Riu involuntariamente. Várias pessoas no círculo riram também. Como um bom orador sabia muito bem fazer as pessoas rirem. Mas nas aulas e palestras desprezava as pessoas que riam de suas piadas prontas, que riam somente por que havia uma certa relação de subordinação. Naquele instante não havia nem uma coisa nem outra. Foi num tom mais leve que continuou:
– Dessa vez não estava tão chato quanto as outras. Os tios que eram donos da chácara eram os que menos me faziam passar vergonha e o filho deles, meu primo Ricardo, era um grande amigo. Chegamos lá bem cedo, depois de uma longa de viagem de seis horas. A chácara dos meus tios era isolada da cidadezinha próxima, era rodeada por morros e haviam poucos vizinhos nas redondezas. Para a maioria dos meus primos era o cenário perfeito; para mim era um monte de mato, um monte de malditas aranhas, um monte de fedor de esterco.
– Tomamos o café da manhã num clima descontraído. Eu sabia que estava sendo ótimo para o meu pai esquecer que havia sido demitido. Ele e meu tio decidiram ir pescar num rio que ficava do outro lado do universo, minha mãe e minha tia decidiram jogar baralho e fofocar, e eu sobrei.
César não queria continuar, mas o caminho que estava percorrendo não tinha mais volta.
– Eu estava pensando em deitar na rede da varanda e tirar um cochilo. Não tinha paciência para pescar, muito menos parra andar uns três quilômetros no meio do mato para chegar no rio. Tinha menos paciência ainda para as tricotagens da minha mãe e da minha tia. Antes que eu pudesse ir até a rede meu primo me propôs que subíssemos o morro para nadar no lago que havia do outro lado. Recusei por que estava com preguiça e não tinha trazido roupa de banho. Ricardo insistiu, disse que me emprestava um calção de banho.
– Ricardo era só um ano mais velho que eu, mas era muito mais desenvolvido. Já estava com uma barba rala no queixo e com um corpo definido. Eu ainda falava fino e era franzino, mesmo tendo dado uma esticada no último ano. O calção que ele me emprestou ficou grande e ele riu. Fiquei muito puto.
Cesar analisou rapidamente seus ouvintes. A maioria estava curiosa e contemplativa. Alguns estavam um pouco sérios, outros avoados. Das quase vinte pessoas, apenas uma estava com uma expressão que não lhe agradou. Surpreendeu-se duplamente: não se importou com aquela expressão e a breve pausa não foi desconfortável.
– Nos despedimos das nossas mães e fomos para o lago. Um nerd da cidade e um caipira do mato. Preciso dizer quem estava ofegante depois de subir o morro?
Vários risos.
– Ricardo sempre foi descontraído, mas naquele dia ele estava me atazanando um pouco mais do que o normal. Brincamos bastante na água, tentando afogar um ao outro, vendo quem aguentava ficar mais tempo sem respirar, cantando músicas cafonas e fumando um maço de cigarros que ele havia pegado escondido do meu tio. O céu estava bem azul, o sol bem quente, e eu me senti tão bem de estar ali com ele, brincando e ouvindo os pássaros... Em dado momento, cansados, deitamos na sombra de uma árvore e começamos a encontrar desenhos nas poucas nuvens que estavam no céu.
– Ele encontrou uma que, apenas na mente dele, parecia o meu rosto. Demorei para perceber o romantismo nesse ato, e até hoje tenho dúvidas se foi intencional ou não. A coisa toda começou a tomar forma quando ele olhou nos meus olhos e perguntou se eu já tinha me apaixonado. Não soube o que responder. Nunca tinha parado para pensar nisso. Era estudioso e reservado e, mesmo beirando a pré-adolescência, ainda não havia experimentado sentimentos por outra pessoa. Atração já havia tido. Mas nunca havia analisado o fato.
– Ele continuou me olhando, ansioso pela resposta. Eu não sabia o que dizer. Encarando seus olhos verdes percebi que ele era bonito. A situação foi ficando cada vez mais erótica conforme o entendimento mútuo ia se instaurando. Nos encaramos pelo que me pareceu uma eternidade. Meu coração batia depressa e eu sentia calafrios de excitação. Não parecia haver mais nada no mundo além de eu, ele, os pássaros que cantavam e os volumes que se formavam sob os nossos calções.
Olhou para o líder e recebeu um olhar condescendente, que disse com todas as letras: ok, mas seja sutil. O restante do grupo parecia ansioso. César estava tão entregue às lembranças que desejava contar tudo da maneira mais verossímil que fosse possível.
– Você... Já? Ele me perguntou. Eu respondi que não e perguntei se ele já. Ele disse que também não, nem com menino e nem com menina. Nesse ponto surgiu um constrangimento que não foi mais forte do que as outras coisas que pairavam no ar. Desviei seus olhos e fui descendo até chegar em seu umbigo, logo abaixo do qual haviam alguns pelinhos esparsos. Ele me perguntou se eu achava que aquilo era errado. Eu respondi com um palavrão que pouco importava se fosse certo ou errado.
– Ele havia acendido a brasa. Eu abanei o fogo. Estávamos deitados ainda na sombra da árvore, de fentre um para o outro. Coloquei uma mão em suas costas e o puxei para perto de mim. Nossos corpos estavam colados, as pernas entrelaçadas, as bocas se aventurando, os calções logo sendo tirados e jogados de qualquer jeito para o lado...
– É a lembrança mais viva, erótica, inocente e linda que tenho na vida. Foi o início de um inferno, foi. Mas é um paraíso que permanece intacto mesmo depois de quase quarenta anos e ao qual eu sempre volto quando me percebo tentando esquecer de quem eu sou.
Olhou para o líder.
– Está aí o seu núcleo, o início. Não sou capaz de ir além disso por ora...
A salva de palmas vinda dos animais famintos foi como um remédio sobre a ferida em brasa. E naquele momento César percebeu que estava completamente desarmado, pela primeira vez na vida. Não se sentia vulnerável; sentia-se vivo.
– Gostaria de agradecer, César, em nome do Indivíduos com Dificuldade de Aceitação Anônimos. É preciso não apenas coragem, mas sobretudo muita confiança para fazer o que você fez. Obrigado por compartilhar parte de sua alma com o grupo. A autoaceitação é um processo árduo que engloba várias etapas, você acaba de vencer a primeira!
Mais uma salva de palmas.
– Temos mais um novo integrante no grupo. Alice, agora a palavra é sua...
Mais tarde, no trânsito, César chorou. Chorou como não o fazia há anos. Chorou como uma criança, como um ser humano.
Ele e Ricardo haviam se amado muito durante aqueles três dias. Nem a lembrança do que havia ocorrido no terceiro dia, quando foram pegos no flagra, era capaz de tirar a beleza das recordações.
E Ricardo, que havia partido dessa para a melhor há dez anos, provavelmente estaria orgulhoso dele. A amizade nunca fora a mesma depois daqueles dias, mas quando se viam, viam-se, um nos olhos do outro, como aqueles meninos deitados no chão, desbravando os caminhos convidativos e ingratos do coração e da sexualidade humana.
Já estava na frente de casa. A peregrinação não havia acabado. Sua esposa Joana estava esperando, ansiosa, com aqueles olhos cheios de amor. Sua mulher amiga, cada com ele há trinta anos e com quem tinha quatro filhos. Um alguém que sempre discordou de seus passos e sempre quis que ele fosse feliz. Um alguém que, com muita paciência, finalmente o fez enxergar o próprio coração. Ela havia sido a responsável pela ida ao IDAA – riu – e, junto com Ricardo, e agora aquele grupo de pessoas, destruía as ruínas de um coração que já não lhe servia mais.
Já na porta lembrou-se daquela expressão desagradável que vira no rosto de um homem no grupo. A expressão não pareceu mais desagradável e foi um César de doze anos que ansiou pelo próximo encontro.