Prisão sem grades
– Maldito! Maldito! MALDITO!
Vera bateu tantas vezes no ar que seu braço já doía. E o desgraçado, lazarento, filho de uma messalina continuava indo e vindo, infinitas vezes, zombando da sua cara.
O sono interrompido ia e voltava diversas vezes. E a cada vez que adormecia tinha a sensação de estar voando nas asas de um repugnante mosquito. Não era bem um sonho, era algo estranho, medonho.
Dessa vez não estava voando, mas sim de costas para a parede. Estava com medo de alguma coisa. Seu coração batia descompassado e ela queria, tentava, mas não conseguia gritar. Percebeu também que não conseguia se mexer; seu corpo estava preso em um emaranhado de fios.
– Meu Deus, Deus meu, me acorde...!
Uma gargalhada sinistra e uma voz perfurante:
– Que delícia, que delícia... – uma cabeça gigante, vários olhos, um par de pinças, algumas milhões de pernas peludas...
Vera acordou com um grito. Atordoada, tateou o corpo inteiro para ter certeza de que não estava mais presa na teia da aranha.
– Acalme-se mulher! – Lourival, seu marido, a segurou e a chacoalhou, assim que ela entrou no celeiro.
– Eu... Não... Aguento... Mais! – lívida, possessa, Vera se soltou dele. – Vá para o inferno com essas suas ideias malucas!
Cega de raiva, saiu trotando do celeiro. A galinha que ousou cruzar seu caminho pagou caro: cacarejou estridentemente ao levar um pontapé na cloaca. Continuou andando em linha reta, mal percebendo o que estava fazendo.
– Eu não devia... Não devia... Não devia ter vindo!
Não tivera escolha. Amava Lourival mais que a si mesma. Amava o marido mais do que amava os filhos. Amava tanto aquele desgraçado que comeria uma tonelada de bosta por ele.
Cortou o braço ao pular desajeitada a cerca de arame farpado. A dor só fez aumentar a raiva que fervia dentro dela. Queria fazer um corte como aquele na garganta do marido, colocar a cabeça dele no criado-mudo ao lado da cama e jogar o resto fora. Veria o rostinho de velho que nunca deixou de ser adolescente todos os dias, daria um beijo em sua testa e não seria obrigada a acompanhar sua vidinha de conto de fadas.
Estava a três malditas noites sem dormir. Três malditas noites virando de um lado para o outro na cama, ouvindo grilos, ruídos suspeitos na selva que circundava a propriedade. Havia chegado ao fundo do poço. Estava vivendo em um mundo pré-histórico, isolado da civilização. Podia ouvir a gargalhada que a bruxa da sua mãe daria se estivesse viva e soubesse que Vera estava vivendo em uma fazenda que, pasmem, não tinha energia elétrica.
Não era para ser dessa forma. Sua incapacidade de controlar a situação estava chegando às vias da autodestruição.
Deu-se conta de que continuava trotando em direção a nada. Se continuasse acabaria por se perder no mato. Talvez fosse comida por um animal selvagem; se fosse, desejou que o animal fosse até o marido com algum pedaço seu. O filho da puta saberia que fora seu assassino.
Ofegante, sentou-se em um banquinho atrás de uma asquerosa latrina que já havia visto lá de longe. Num canto encontrou um maço de cigarros e um isqueiro do marido. Então o desgraçado vinha ali para fumar, cagar e pensar na vida?
Lourival tinha uma odiosa mania de fugir da realidade. No geral prática, descomplicada e simplista, Vera nunca havia entendido essas escapadas. Em um momento ele estava ali com ela, presente, o mais doce e agradável parceiro que poderia ter na vida; de repente, somente seu corpo continuava presente. Os olhos se perdiam em nada, os ouvidos apresentavam defeito. Seu pensamento ia tão longe que Vera sentia-se sozinha, abandonada.
Nos primeiros dez anos de casamento essa esquisita maneira de ser do marido já havia sido motivo de incontáveis brigas. Vera não aceitava ser deixada de lado, jamais tolerara esse tipo de frieza. Conforme os anos foram passando, porém, acabou por perceber que não conseguiria muda-lo e que justamente por ele ser assim que havia se apaixonado por ele.
Havia se apaixonado. Metade de sua vida havia sido gasta planejando o casamento perfeito: um homem rico, que comesse o pão que o diabo amassou por ela, que lhe proporcionasse uma vida luxuosa da qual ela fosse o centro. A outra metade havia sido gasta em um casamento imperfeito, com um homem que não tinha nada a ver com ela e que fazia o amor que ela sentia pelo dinheiro parecer pequeno perto do amor que sentia por ele.
A jovem de vinte anos desprezaria a quarentona que aliviava as mágoas com as costas em um latrina. Diria que amor só existe uma vez na vida, que ele vira ódio e nunca mais voltar a existir. Diria que o homem de quarenta e tantos anos com quem casara não chegaria aos sessenta e tantos. A jovem tinha um sonho secreto quando disse o sim: ser viúva em breve.
Não só não havia se tornado viúva como também havia sido catequizada. O homem mais velho lhe mostrou o quanto era mimada, imatura, arrogante, materialista e controladora. Não que Vera não soubesse, ou mesmo que se importasse: se ele tivesse esfregado isso em sua cara, a guerra estaria declarada e ela, obviamente, teria vencido. Mas Lourival a mostrou a verdade sem querer (ainda suspeitava dessa conclusão) e inclusive mostrara que ela mesma o havia ajudado a ser um ser humano melhor, mais centrado, menos racional e mais instintivo, um bom pai e um bom amante.
Sentia um misto de amor e ódio tão grande. Um coquetel de emoções que a prendia em um modo de fluidez, que a tirava do papel de protagonista e a colocava em um papel de coadjuvante. Era opressivo, humilhante; era aliviante, libertador.
O céu lentamente ia tingindo-se de azul escuro. O som dos grilos e aquele estranho canto das árvores espantaram seus devaneios: estava na orla da floresta, a uns dois quilômetros de casa. O medo e o amor empunharam as espadas. Os perigos da floresta versus a discussão que teria se voltasse naquele instante. Os bichos que poderiam picá-la, mordê-la, comê-la; as provocações que faria ao marido até acordar a fera que havia dentro dele.
Decidiu continuar onde estava. Adorava uma boa briga mas, se por fora o orgulho dava a entender que ela sempre saía por cima, por dentro os sentimentos intensos a bulinavam lentamente até provocar feridas latejantes. E Lourival, para seu desgosto ou êxtase, sabia disso.
Quando achava que as coisas estavam tranquilas, ele vinha com uma de suas ideias mirabolantes. “É para dar uma guinada na vida Verinha, meu amor. As coisas estão paradas demais. A vida é uma só, desperdício demais fazer tudo igual todos os dias!” O discurso lindo transformava-se em pesadelos como este último: viver em uma fazenda, isolados de qualquer avanço da humanidade, sobrevivendo de alimentos plantados pelas próprios mãos, de animais criados. Uma vida estilo idade da pedra, sem grandes emoções, entediante.
Dois meses na fazenda foram suficientes para transformar Vera em uma selvagem. Parara de cuidar da estética: os cabelos sempre bem-cuidados com os melhores produtos haviam perdido a vida. A pele, sempre bem hidratada, estava descuidada e, outrora perfumada, na maior parte do tempo estava com odores naturalmente desagradáveis. Em um acesso de raiva, há algumas semanas, havia se desfeito de seus tesouros: perfumes, hidratantes, cosméticos, suplementos alimentares. Arrependera-se: o fizera para provocar a culpa no marido; conseguiu apenas um parabéns pela coragem.
Em dois meses conversara apenas duas vezes com filhos. Eram necessários oitenta quilômetros de viagem até uma rudimentar lan house cidade vizinha. Teria ido lá para conversar com os filhos todos os dias em outros tempos; agora, porém, as crianças haviam crescido e as conversas eram curtas e sem graça. E vera, com culpa, invejava a liberdade dos filhos, que já decidiam por conta própria (contra a sua vontade e a favor da vontade de Lourival) os rumos da própria vida. André, uma versão mais nova e mais exagerada do pai, com dezenove anos, estava nos Estados Unidos estudando música. Larissa, uma versão mais nova e mais exagerada da mãe, com vinte e dois anos, vivia em Dubai em uma relação aberta com um sheik riquíssimo...
Lourival não a obrigava a fazer nada, é claro. Com um odioso senso de liberdade e justiça que não tinha um pingo de chantagem emocional, sempre deixara claro que não gostaria de fazer ninguém infeliz pelo seu modo de ser. Vera não era obrigada a seguir suas loucas aventuras; podia seguir a própria vida, sem que isso significasse um divórcio. Poderiam se ver e se amar ocasionalmente. E, ao invés de sair pelo mundo desfrutando da fortuna do marido, Vera continuava ao lado dele.
Viver em uma fazenda era até normal quando pensava em tudo que já havia vivido ao lado de Lourival. Logo no primeiro ano de casamento foram viver no Alaska. De origem pobre, Vera, que sonhava em viajar, aceitou de bom grado. Ainda vivia, na época, a inveja: dono de uma herança suficiente para viver uma vida inteira tendo o bom e o melhor, donos de uma falta de materialismo e um excesso de sede de viver intensamente, Lourival a atiçava instintos homicidas. Sentia vontade de matar aquele homem que não era humano.
No frio do Alaska, vivendo como esquimó, planejou incontáveis vezes a morte do marido. Em todas ela jogava e enterrava o corpo na neve.
Não matou; embuchou. Como o marido a fazia se sentir solitária (já se odiava por se sentir solitária, casara apenas por dinheiro) resolveu ter um filho. Era uma segurança financeira e uma necessidade emocional.
Antes de Larissa nascer, convenceu Lourival a mudarem-se para Paris. Seu sonho havia se realizado. Em Paris viveu seu sonho de princesa: viveu em uma mansão, tinha criados, frequentava a alta sociedade. Mas Lourival já estava farto. Vivera por cinco anos preso em um lugar que achava entediante. Propôs pela primeira vez que continuassem o relacionamento de maneira aberta. Ela ficava com as crianças, ele sairia pelo mundo se aventurando. Foi nesse ponto que Vera descobriu que o amava, que estava confinada em uma prisão sem grades.
Era incapaz de se lembrar de todos os lugares em que já haviam vivido. Não criavam raízes. Aos poucos Vera foi deixando de fazer amizades (ao mesmo tempo que percebia o quão inúteis eram as amizades que buscava). Viveram em lugares pobres, assumindo o estilo de vida local. Em lugares remotos, tão ou mais remotos que a fazenda na qual estavam agora. Vivenciaram uma guerra civil no Oriente Médio, abriram um restaurante de comida brasileira na China, deram aulas de português na Itália. Em todos os lugares em que viviam faziam algo; Lourival parecia um camaleão, rapidamente captando oportunidades de negócios e aventuras. Era um poliglota. Falava mais de dez língua. Vera arranhava uma ou outra e morria de vergonha, raiva e inveja: não tinha a inteligência rápida e dinâmica do marido. Não tinha, para ser sincera, a vontade que ele tinha.
Os filhos eram sua arma contra o marido. O principal argumento que tinha para fazê-lo entender que viver como cosmopolita não era algo bom para as crianças. A arma mostrou-se um belo tiro pela culatra: André e Larissa, sempre apaixonados pelo pai, cresceram e tiveram as personalidades moldadas para a liberdade. Jamais reclamaram por deixarem amiguinhos ou qualquer hábito, posse ou local para trás; o brilho nos olhos dos dois era o reflexo no brilho nos olhos do pai: novos amigos, novos hábitos, novas possibilidades e novas descobertas.
Com as raízes já acostumadas a não fincarem muito fundo, Vera nem esboçou reação quando, há alguns meses, Lourival decidiu voltar ao Brasil. Viveriam, dessa vez, em uma fazenda remota no interior do Estado do Amazonas. No primeiro dia, porém, percebeu que havia chegado ao seu limite. Nada vez, como sempre.
A noite havia caído. Vera levantou-se e se esticou, vendo os lampiões distantes da fazenda. Um torpor tomou conta de sua mente e de seu corpo.
Encontrou um lampião pendurado próximo ao teto da latrina. Acendeu-o com o isqueiro, abriu a porta, abaixou as calças e sentou-se. O cheiro vindo do furo do assento lhe deu náuseas. Defecou imaginando que o marido estava lá embaixo. Limpou-se, saiu da latrina e sentou novamente no banquinho.
Estava acostumada com os ciclos de morte e renascimento em sua vida. Lourival já a matara incontáveis vezes. Sentiu-se morrendo naquele instante, apreciando o cheiro de merda e vendo vaga-lumes piscarem loucamente no escuro.
Sonhara um dia em ser viúva. Mais fácil seria Lourival ficar viúvo. De cabeça baixa, voltou para casa.
– Daqui eu só saio morta ou assassina...
A galinha cruzou novamente seu caminho. Talvez fosse outra. Não importava.
À luz fraca do lampião, viu ele fazendo palavra cruzadas.
– Instrumento de acesso exclusivo com... Cinco letras...?
– Chave – Vera se jogou no sofá.
– Na mosca menina...
– Precisamos colocar telas nas portas e nas janelas. Hoje uma mosca me levou ao inverno...
Lourival zumbiu, imitando uma mosca. Riram.
– Tira sentido e dá sentido à vida, quatro letras – disse ele, colocando o livrinho de lado.
– Vera?
Riram novamente.
– E se eu for embora agora, o que você vai fazer?
– Dar para um adolescente bem-dotado todos os dias, criar raízes em qualquer porra de lugar e fugir da falta que a sua presença inútil me faz!
– O que mais?
Estou presa a você, deve ser karma, coisas de outras vidas. Te odeio do fundo da minha alma...
– Também te odeio por você não desgrudar de mim, mesmo sendo claramente infeliz...
– Quem disse que eu sou infeliz?
– Aquele lampião lá longe...
– E ele te contou que caguei minha infelicidade e voltei, toda sensual para te seduzir?
– Agora sim que fiquei com tesão...
O silêncio caiu entre os dois. Vera fechou os olhos e a verdade explodiu em sua cara. A prisão sem grades não tinha apenas um, mas dois prisioneiros. Renascia pela nonagésima vez na vida.
– Vamos... – pensou por um instante. – Vamos construir um parque de diversões aqui?
Não viu; sentiu os olhos dele se iluminarem.
– Que público teria aqui?
– Então vamos para o Sul, construímos ou compramos...
– Algo um bicho te mordeu, né? Estou velho...
– Vá se foder Lourival! Amanhã vou começar a mexer meus pauzinhos, não estou de brincadeira...
– Hmmm – ele pareceu genuinamente admirado. Vera apreciou aquela reação como se fosse um orgasmo. Nunca arrancava nada dele a não ser a mesma expressão de tédio de sempre. Como se ele a conhecesse tão a fundo que nada do que ela fizesse ou dissesse fosse novidade. E ele adorava novidades.
– Vai entrar nessa comigo?
– Estou velho. O Ednaldo pode te ajudar...
– Sim, ele vai me ajudar. E se você não quiser, faço tudo sozinha e deixo você pra trás...
Não havia chance de Vera deixá-lo para trás. Não havia chance dele deixá-la ser livre pela primeira vez na vida – porque agora, ela é quem havia decidido.