A VIDA

Mais uma vez estava Ana parada em pé, esperando o táxi antes da hora combinada. Ela se via envolvida pela ansiedade de sua família em todos os passos de sua vida. Eram todos boas pessoas, mas extremamente organizados nos mínimos detalhes. Focados em ser perfeitos se obrigavam a estar sempre um passo a frente. Até em compromissos faziam questão de esperar o transporte com antecedência e chegar bem antes da hora agendada. Ana tinha dificuldade em acompanhar esse exagero. Ela havia ido morar com sua família e estava com alguns desacertos pois já trazia problemas em si mesma. Então sempre se atordoava com o tal perfeccionismo. Na verdade Ana tinha peculiaridades na forma de viver. Gostava da arte em todas as suas formas de expressão, odiava escutar o jornal assim que acordava pela manhã, enquanto que os demais faziam questão de assistir todos os noticiários do dia. Ela gostava de roupas confortáveis e cafonas enquanto eles se arrumavam de acordo com a moda do momento. Ela também tinha o péssimo hábito de falar tudo o que pensava, isso lhe causava alguns problemas. Amava plantas e animais. Aquele era o dia de sua consulta com o psicólogo e ao entrar no carro suspirou aliviada. Na consulta foi colocada a questão da ansiedade. Ela também sentia esse problema mas expresso de forma diversa, sentia angústia em sair sozinha e quebrar rotinas. O profissional propôs um exercício radical. Ela teria que viver um dia totalmente fora de todos os seus hábitos e longe da família. Ana disparou: - Você quer que eu surte, fazendo me defrontar direto com meus piores medos? Ele calmamente disse - Isso é uma forma de vencê-los e confiar mais em você mesma! Pense em termos de avanço, para que possa superar esses entraves. É um enfrentamento. Você porém tem que querer isso. E aí? - Puxa!!!! Não sei se consigo... parece o mesmo que entrar dentro de fogo!! - Ana, não posso e nem tenho direito de te obrigar, mas seria definitivo isso. Seria como um remédio amargo porém eficiente. Mas pense nisso um pouco mais. Sinta-se a vontade, não é uma ordem... nem" ter que fazer! " ... Ana voltou para casa remoendo aquela proposta, tinha vários bloqueios embora se sentisse competente em alguns setores. Resolveu então elaborar uma listagem onde colocaria áreas suas onde se sentia realizada e as outras em que não era bem sucedida. Procurou pensar em termos de sua satisfação pessoal. Feita aquela estranha tarefa pode observar que tinha dificuldade em relacionar- se com gente, pois todos os bloqueios tinham essa convergência infeliz. De fato aquilo que o psicólogo havia sugerido parecia sensato embora dolorido e angustiante. Montou um plano. Escreveu um bilhete aos seus familiares onde tranquilizava-os e explicava que passaria o dia fora pois precisava fazer um tipo de terapia sozinha, o que não era motivo para susto.Telefonaria mais tarde explicando. Feito isso foi dormir. Estava resolvida a sair bem cedo no dia seguinte. Às 4: 30 hs da manhã ela saiu com sua mochila nas costas pé ante pé e no portão fez uma prece a Deus pedindo que a protegesse, Ana tinha 33 anos, cabelos castanhos curtos, tipo mediano e olhos também castanhos. Viu que havia movimento de pessoas indo trabalhar. Foi andando, sem rumo definido e pensando- E se eu arrumasse um emprego? Mas sentiu o medo tomando conta dela. O pai havia lhe deixado uma pensão razoável e não havia sido isto uma necessidade em sua vida. O medo crescia, teria que falar com desconhecidos, ir à lugares distantes procurar um trabalho. E o medo tornou- se pavor, ela tremia. - Aquilo devia ser o confronto que precisava ser feito- dizia a si mesma- Preciso superar este pânico que está me dominando senão vou desistir antes mesmo de começar. Começou então a dirigir seu pensamento ao que via pelo caminho. Estava numa rua bem arborizada, agradável perfume de jasmim era sentido e o orvalho da manhã caía. Havia um homem enrolado em um cobertor debaixo de uma marquise e ela observou que ele lia um livro atentamente. Achou curioso aquilo. Mendigos tinham um aspecto andrajoso, mas aquele estava lendo e era meio diferente, cabelos lisos e longos, rosto fino, sobrancelhas espessas. Ela Quis saber que livro era aquele e se aproximou bem devagar. Conseguiu chegar perto sem ser notada e viu o título- "Formas de Cultivo Para Plantas Ornamentais. Tipos e Variedades" . Seus olhos brilharam, um mendigo de rua lendo um compêndio sobre botânica, por sinal excelente, conhecia muito bem aquele livro. Era realmente muito interessante pois ele estava fascinado pelo que lia, nem a tinha visto aproximar-se e chegar muito próximo. Impulsivamente o chamou a conversa: - Amigo, posso falar com você? Ele despertou da leitura assustado. - Oi moça!!! Que está acontecendo? Ela sorriu- Nada, se acalme. Como você se chama? Ele a olhou desconfiado. - Me chamo Tom. Não fiz nada errado!!!! Estou lendo somente e não uso porcarias moça. Ana ficou espantada, o cara devia ter uns trinta e poucos anos e tava curtindo o livro de botânica, ainda por cima um de vocabulário difícil onde havia muitas especificações técnicas e classificações químicas de adubos e insumos necessários. Ela não se conteve. - Desculpe, eu me chamo Ana e adoro plantas. Vi que você está lendo um livro muito bom... Ele a interrompeu: - Eu amo botânica moça! Minha vida era isso. Então meu melhor amigo e sócio me enrolou, fui enganado dona Ana, e agora estou aqui na rua... Ela estava surpreendida. Será que podia acreditar em um desconhecido? Também aquilo nem era de sua conta... O dia estava já claro. Ana deixou a curiosidade ganhar do medo que sentia. - Escute aqui, isso é verdade mesmo? E olhou bem dentro dos olhos de Tom. Ela tinha a mania da transparência no falar e queria saber mesmo aquela história tão estranha. - Sim! Estou falando a verdade!!!! Meu pai me deixou um sítio lindo, lá em Vassouras. Eu plantava orquídeas, mas amava mesmo minhas rosas, eram uma paixão... Além delas eu também tinha um viveiro de várias espécies. Esse livro sempre foi meu preferido. Eu sou engenheiro ambiental dona Ana. Tenho até o diploma aqui, mas isso nem interessa... aí o Douglas, um amigo de infância meu apareceu lá, logo depois do meu pai falecer. Eu estava fora de mim aqueles dias, adorava ele sabe? Meu pai era especial. Maravilhoso. Me ensinou muito... pois é, Douglas aproveitou que eu estava desorientado, fingiu que ia me ajudar. Eu fiquei muito agradecido. Ele me propôs sociedade, tinha um sítio lá também e disse que íamos unir os negócios. Confiei nele e assinei uns papéis sem nem conferir. Agora tô aqui. De que adiantaria eu fazer uma loucura? Ia trair tudo o que meu pai me ensinou durante a vida toda. Entreguei a Deus. Ele chamou a polícia e mandou me expulsar de meu próprio sítio. Peguei umas roupas, o diploma e esse livro, trouxe também um dinheiro, está no banco mas não quero gastar em hospedagem. - Vou ver se compro um terreno por aqui e recomeçar. A moça sabe dizer se tem alguma terrinha boa por perto à venda? Ana olhava para Tom meio incrédula, porém via sinceridade em suas palavras. Além do que não havia motivos para ele mentir. Respondeu pausadamente- Eu não sei... nunca prestei atenção em placas. Mas taí uma coisa legal para se fazer!!! Eu ia gostar de uma atividade assim!!!! Isto ela disse num rompante. - Dona Ana... - Dona não!! Ela protestou. - Ana só! Ele riu- Tá, Ana. Então, quando eu achar o terreno vou precisar de uns dois ajudantes... Se você quiser e souber o assunto, na prática, pode trabalhar lá ué. Mas primeiro preciso achar um terreno bom para que eu recomece. Abriu a mochila e pegou um cartão dando a ela. Daqui há umas semanas me liga. Mas tem que entender mesmo do assunto heim? Pode procurar meu nome na internet. Lá no Linkedin tem meu perfil. Pode checar tudo. Aí tem meus dados todos... Súbito surgiu uma moto que abordou os dois. - Perdeu!! Perdeu!!! Vai passando, dona!!!! - O motoqueiro estava com uma faca e ignorando Tom, um simples" mendigo" de rua, ameaçava Ana querendo sua mochila. Ela fez o movimento de tirá-la bem devagar e o assaltante não percebeu que Tom havia levantado ágil aplicando um golpe de" gravata" em seu pescoço. - Calma aí vacilão covarde!!! Querendo um ganho né? Agora fica ligado pois se reagir te enforco!!!!! O assaltante sufocado foi imobilizado e fingiu desmaiar. Tom deitou-o no chão e disse para Ana chamar a polícia. Quando ela pegou o celular, o marginal deu um pulo e correu feito louco para longe. Tom ainda correu atrás tentando alcança-lo porém não conseguiu. Estava exausto e não tinha muitas forças. Voltou e perguntou se Ana estava bem, ela tremia e estava verde. - Calma Ana!! Tudo bem, já passou!!!! Ele sentiu uma tonteira. Havia muito que não comia. Estava na rua há dois dias e havia focado em conseguir o terreno, tudo mais não importava. Ana percebeu sua fraqueza- Ele te machucou?? - Não! Estou bem! Mas preciso comer alguma coisa. Acho que tem um bar ali em frente. Quer tomar um cafezinho comigo?? Ela pensou: - bandido ele não é! Me tirou de uma fria, gosta de plantas e parece ser do bem. Olhou e viu de fato um bar até bem arrumado perto dali. - Tá, aceito sim, vamos lá Tom. Afinal você é o meu herói né mesmo? Sorrindo seguiu ao seu lado. Na conversa, enquanto tomavam o café saboreando um pão com queijo, descobriram pontos em comum. Ele adorava gatos e havia deixado seus dois amigos felinos com uma vizinha em quem confiava. Ia buscá-los assim que estivesse estabelecido. E contou seus planos a Ana. Começaria investindo em plantas resistentes para poder implantar o negócio a curto prazo. Tinha listas de possíveis compradores, amigos dele e do pai. Eles haviam prometido fidelidade ao fornecimento. Eram quantidades expressivas e no começo iria fazer o plantio por estacas usando hormônios enraizantes para acelerar a produção. Ana escutava encantada, o rapaz entendia a fundo todo o processo, desde a compra dos insumos, plantio até distribuição da produção. Ele discorria com segurança e ela via que era certo realmente acreditar. Súbito ele virou e olhando-a nos olhos disse: - a vida é bem louca mesmo. Eu não gostava muito de gente. Ficava lá no sítio só com meu pai, cuidando das flores e agora encontrei você que pensa parecido... veja só. Que mundo louco. Ana então contou de sua própria vida até ali. Ele estava de fato curioso- Quer dizer que foi morar com eles depois que sua mãe morreu?? - Jesus!!!!!! Nossos caminhos são bem paralelos não acha? Perguntou Tom surpreso. - Sim. Estranho isso... essa coincidência. Ele a olhou e fez uma careta batendo de leve na mesa. - É a Lei da Sincronicidade de Jung!! Essa lei diz que o universo envia-nos mensagens através de supostas situações ou coincidências. Só precisamos ter atenção ao que vivemos para podermos perceber isso. Ter fé em nós e na vida entendendo que tudo é atraído com fim ao nosso crescimento e aprendizagem com essas situações. Ana ficou embasbacada. - Ele entendia até de psicologia, nossa! Ela pensou que, de fato, procurava respostas e estava recebendo através de Tom. A vida estava interagindo com ela. Ele viu que ela refletia: - Poxa!!! Dez reais pelos seus pensamentos!!!! Ela o olhou com doçura e disse- Eu estou " vendo" que" a vida" tem" vida" como se fosse uma coisa só. E a gente tá misturado dentro dessa" vida" . Junto e misturado entende meu amigo? Ele piscou- Ana agora você vem com papo de globalização? Mas que" papo cabeça" esse nosso heim?? E deu uma gargalhada, ela também riu muito. E ali nasceu uma amizade sólida e uma possível parceria, talvez sociedade no futuro. Na mesa daquele bar. Que havia começado em uma rua qualquer. E podia ir também evoluindo e quem sabe transformando-se, como flores, plantas e bichos. Afinal não é para isso a vida?