O CARROCEIRO
Nair Lúcia de Britto


O carroceiro encostou sua carroça no lugar de sempre, após ter levado a carga ao destino certo. Espalhou pelo chão, uns papelões para se deitar. Abriu uma garrafa e tomou um gole de cachaça. Só assim conseguiria dormir naquele chão duro.

Era um homem moreno, cabelos lisos, corte curto; magro e, nos traços do rosto, percebia-se alguns vestígios indígenas. Um tipo exótico e, se não fosse a pobreza dos trajes e o destrato, seria até bonito.

Ainda sentia a bebida arder na garganta, quando viu o vulto da sua mulher se aproximando. Os cabelos desalinhados, um vestido velho, mas ainda assim era bonita.

- Vim trazer uma intimação pra você ir prestar esclarecimentos na DDM.
- Que DDM? Que raio é isso?
- Delegacia de Defesa da Mulher. Se você não for,
a polícia vem te buscar! - Ela disse e saiu, ventando.
Novamente só, ele esbravejou; e depois bebeu até cair no sono.

Parado à porta de uma sala da Delegacia, ele perguntou, tímido:
- Dá licença, doutora?
A mulher loira, de cabelos curtos, frente ao computador, parou de digitar e respondeu:
- Não sou doutora, sou escrivã. Pode entrar! - disse, apontando para uma cadeira com o estofamento poído.
Ele sentou-se frente a ela para ouvir o histórico do Boletim de Ocorrência.
- Sua mulher se queixa que o senhor bebe muito e a xinga de vários palavrões. No dia dos fatos, chegou em casa bêbado e ameaçou agredi-la. O que tem a dizer sobre isso?
- Doutora, eu nunca bati na minha mulher. Isso é mentira dela. Agora xingar, eu xinguei porque ela me deixa nervoso.
- Ela disse que o senhor bebe muito...
- Isso é verdade. Meus pais morreram quando eu era pequeno, e fui criado no mundo; o vício de beber foi por causa de muito sofrimento.
- Dê-me seu RG.
- Não tenho, mas trouxe a certidão de nascimento.
A escrivã anotou todos os dados e escreveu as declarações dele no computador. Quando ela terminou, o carroceiro desabafou:
- Minha mulher me tocou pra  fora do barraco. Tô dormindo na rua, no chão... Ela disse que não aguenta mais meu bafo de pinga.
- E com toda a razão! Que mulher que gosta de sentir bafo de pinga? Deus me livre!
- É... mas ela já foi me procurar várias vezes, pra voltar pra casa. Ela é quem me ameaçou, dizendo que, se eu me engraçar com outra mulher, vai me dar uns tapas!
- Então é melhor o senhor andar na linha... (A escrivã riu).
- Mas doutora, ela me mandou embora. E, com todo o respeito que tenho pela sua pessoa, eu preciso de uma mulher a meu lado!!! - Ficou nervoso.
- Me diga uma coisa – agora a escrivã falava, sério.
- O senhor não gosta mais da sua mulher?
- Gostar, eu gosto. Tô com ela há oito anos e tenho dois filhos. Sinto saudades deles.
- Então o senhor vai fazer o seguinte: (estendeu-lhe um folheto com o endereço da entidade dos Alcoólicos Anônimos).
- O senhor vai fazer um tratamento pra deixar de beber, faça as pazes com a sua mulher e volta pra casa. O senhor vai trocar sua família por causa de uns goles de cachaça? Tá certo isso? Vai trocar a mãe dos seus filhos por uma outra qualquer?
- O carroceiro não respondeu nada, mas ficou pensativo.
- Tá vendo aquele quadro, ali na parede?
Ele olhou pro quadro. E ela prosseguiu:
- É a imagem de Jesus Cristo! É Ele quem está me iluminando a lhe dizer essas palavras. Vai fazer o que eu disse? Promete que vai se tratar, vai parar de beber e de xingar a sua mulher?
- Prometo, doutora! - Depois se despediu, levando o folheto que a “doutora” lhe dera.Por dentro, sentiu a alma lavada!

  
Nair Lúcia de Britto
Enviado por Nair Lúcia de Britto em 15/03/2018
Reeditado em 15/03/2018
Código do texto: T6280934
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.