Cenas do supermercado
Olha, eu nunca soube ao certo se o nome da mãe do Gilberto é Doracy ou Norma.
Sei, não tem nada a ver um nome com o outro, mas a confusão existe e não consigo eliminá-la.
O pai, desse eu tenho certeza, se chama Getúlio e foi padre até os vinte e cinco anos.
Formam um casal daqueles clássicos, conservadores, rezam ao acordar, na hora do almoço, nos fins de tarde, antes de dormir.
Rezam, rezam e rezam.
Dos cinco filhos, só me dava bem com o Gilberto, uma criatura extremamente amorosa, dedicada ao trabalho e aos amigos.
Gilberto é gay e para escapar da certeira reação dos pais, foi se meter nos fundos do Canadá e por lá escancarou a porta do armário.
Faz tempos que não nos falamos, mas ainda guardo o livro do Neruda que ele me deu.
Dona Doracy (ou seria Norma?) tinha o costume de fazer arroz carreteiro sempre que eu ia visitá-los.
No começo achei bom; com um ovo frito por cima, sempre caiu bem.
Mas lá pela quinta vez, comecei a achar estranho.
Seu Getúlio comia até quase se enfartar.
Disfarçava o arroto fingindo bocejos.
E dessas coisas da vida, nossos caminhos se entortaram e nunca mais nos encontramos, até o sábado último, no corredor de um supermercado.
Os reconheci de imediato, seu Getúlio no mesmo estilo de general, a esposa colada em suas mãos, o olhar um tanto perdido.
Tipo de encontro indesejado, não tinha nada para falar com eles.
Tentei escapar grudando as mãos na primeira prateleira que me surgiu, a cara enfiada entre latas de leite ninho.
Não teve jeito, dona Norma (ou seria Doracy?) cutucou minhas costas com a ponta da unha.
- Oi, você não é aquele amigo do Gilberto?
- Gilberto...?(fechei os olhos quase por inteiro, a testa em risco, extremamente franzida, como quem tenta se lembrar de algo).
- Meu filho Gilberto, vocês trabalharam juntos no jornal.
- O seu nome não é André? - perguntou coronel Getúlio na voz grave de sempre.
- Sim, sim...Mas claro, vocês são os pais do Gilberto.
- Isso mesmo, eu sou a...(ela ia desvendar a tortuosa dúvida, mas o Marechal se intrometeu e não deixou).
- Há quanto tempo, meu rapaz!
E deu-me um abraço de urso.
- Faz tempo, né? E o Gilberto? Não tive mais notícias dele.
- Está bem, mora no Canadá, está casado e tem dois filhos.
- Sei (adoção, com certeza, pensei)...
- Ele vem nos visitar sempre no fim do ano.
- Ah, que legal. Peça para ele me adicionar no whats ou no Face. Sinto saudades dele.
Dona Norma sorriu, se fazendo menininha.
- Ele não tem nada nas redes sociais.
- Não?
- A mulher dele é muito ciumenta... Sabe como é...
- Sim, sei...
De repente, uma estranha luz escapou dos olhos do Sargento:
- Ele manda cartas para nós.
Arregalei os olhos, surpreso:
- Cartas?
- Sim, cartas! Sempre teve ótima letra. Manda junto algumas fotos, dele, da família, precisa ver como a caçula se parece com a (Ia desvendar o tortuoso segredo, mas Norma/Doracy não deixou, se intrometendo, com a voz fina e uma chuva de perdigotos).
- Não, não se parece comigo, parece com ele, com o Gilberto.
- Ah, nossa, como eu gostaria de ver. (sempre tenho esses momentos de bobeira, falo sem pensar e depois arregalo os olhos, arrependido).
- Pois apareça lá em casa um dia desses? - Disse o Capitão, num sorriso de dentes amarelos. A esposa completou numa nova enxurrada de perdigotos:
- E leve sua esposa e o filho. - dei uma piscadela cúmplice e completou - Notei que estava comprando leite ninho.
- Tá bom, vamos sim, qualquer dia desses.
- Ora, deixe disso, vá amanhã! Ordenou o Tenente Coronel - moramos no mesmo endereço de sempre.
- Claro, claro, irei sim, pode contar.
Ela então postou o rosto perto de mim, fez as mãos em segredo e sussurrou: - Vou fazer aquele arroz carreteiro que você adora...
- Ah, sim, adoro mesmo, vou sim...
O General deu-se por satisfeito, apanhou a mulher por uma das mãos, enquanto com a outra esmagava meus dedos num cumprimento final.
- Vamos Jandira, precisamos comprar a carne seca para o carreteiro. Até amanhã, meu bom rapaz.
E lá se foram, sem olhar para trás.
Para me garantir, levei duas latas de leite ninho, com medo que me vissem no caixa e duvidassem de mim, a cara meio azeda, um tanto marrom, na garganta seca a pergunta em riscos de fogo: o que afinal tem a ver Jandira com Doracy...ou Norma?