O brilho dourado do sol
“É ela! É ela! – murmurei tremendo,
e o eco ao longe murmurou – é ela!”
Álvares de Azevedo
Parecia uma plantação de girassóis o sorriso dela. Por isso, pedi ao patrão que me deixasse ali no meio-fio, no décimo segundo quarteirão da Marcelino Pires. Não protestou, pois eu sou o melhor tratorista que Dourados e região já viu. Ensino médio completo e curso na John Deere. Meu patrão não é nacionalista e detesta feriados.
-Tem trabalho na segunda, heim?
-Sim senhor, patrão!
Atravessei o canteiro e fiquei na sombra para melhor ver. O perfil, o busto, a bunda, parecia um pavão com aquele uniforme amarelo-ouro e adereços azuis. Estava impaciente, creio que procurava alguém na multidão da calçada.
-Olha como ostenta a bandeira nacional!
-As tentação...
Se é o efeito do álcool, do sol ou do sal do espetinho do bar eu não sei. Sei apenas que me falta o ar. Dinheiro nunca tive. Falta-me ainda a palavra certa, a senha. Meus olhos de conquistador barato ardem e me prendem a ela como um peixe ao anzol. Soltei um disparate, bem alto:
-Ana Hickman não é mais bela!
-Ana o que?
Recebi o segundo sorriso do dia. Belas pernas marcham na cadência do bumbo. Até os cabelos, antes contidos, soltam-se e acompanham o sopro erótico do trompete. Foi avançando, ganhando distância e beleza.
-Ela é lá do Jardim Vitória, cara!
-Sou de lá, também!
Fui quase trotando, tentado a marchar, mais vinte metros acompanhando o desfile. Desviei das árvores, dos postes e das lixeiras. Parei no cordão de isolamento da polícia. A parada era na praça de frente para o palanque das autoridades.
-Agora a banda toca forte!
-É para o prefeito que toca.
Suado atravessei o canteiro, a avenida. Parei na lanchonete do outro lado e no balcão pedi um conhaque duplo. Enquanto o álcool descia rasgando eu ouvia o tá tá rá tá tá das caixas e o plém plém plém dos pratos. Dentro do peito, apenas o ritmo dissoluto do coração. Na praça, fogos e discursos. Dali a muito se dispersou a multidão.Ficaram as bandeirolas e as embalagens de sorvete enfeitando os paralelepípedos.
-Tem circular lá pro Jd. Vitória?
-Mototáxi é mais rápido.
Tomei mais uma pra garantir. Acenei para o cara e ele encostou. Montei na garupa como se monta a cavalo. Dez minutos e alguns quebra-molas depois eu estava só e infeliz na rua principal do bairro. Falava em torno como quem fala consigo:
-Não tem nem um buteco nesse lugar?
-Aberto só o da zona agora...
Um bêbado descamisado e cambaleante andava com o peso da mágoa sobre os ombros. Tinha sido brutalmente convidado a se retirar, disse. Provou mostrando a cara. Ficou segurando o poste, tentando acender um cigarro. Fiz o favor.
-Como faço para entrar lá?
-Se tiver carro, entra...
Ficamos os dois segurando o poste. Cães magrelos passaram coxeando. De uma casinha vinha um choro de bebê, de outras vinham gritos de quase-gol. Grilos roucos desafinavam na sibipiruna.
-Olha lá, vem vindo um bacana!
-Conheço aquela Mitsubishi!
Era o patrão que vinha indelevelmente. Acredito que não estava perdido, nem procurando. Reduziu a velocidade. Já transpondo o quebra-molas baixou o vidro. O ar frio da cabine foi engolido pelo calor do dia. A moça do desfile estava com ele. Não sorria. Eu olhava para ela não-vendo.
-Vai entrar ou vai ficar aí parado?
-Entro outro dia.
O patrão deu de ombros, balançou a cabeça e acelerou. Lá foi ele conduzindo aquela manga-rosa muda. Eu fiquei calado e indiferente. Os braços caídos, o cigarro pendendo da boca. Dei uma risadinha tímida para o fim da rua.
-Goooooollll do Corinthians!!!
-Salve o Curintians!
O bêbado ria e ensaiava um passo de dança. Dancei também enquanto a caminhonete desviava dos buracos e levava na carroceria – sobre sacas de sal bovino – um traje dourado resplandecendo ao sol de setembro.