Fumegar

O café fumega na mesinha. E o tempo passa quando queríamos que ele parasse. Esta é apenas uma alegoria, é claro. O café, a fumacinha que sai, o sujeito ocupado que não o toma e todos os etceteras de uma história moderna. Uma história de amor e de perda.

O café reflete a lâmpada do teto que está a iluminar a sala onde tem um homem a rebobinar toda a sua vida. Foi mesmo uma história de amor? Quando saber quando nossos sentimentos já romperam a barreira do egoísmo em que o amor a si próprio deixa de ser um Narciso que se olha e se dirige a alguém ao nosso redor? Será mesmo amor o que nos conduz ao ser almejado que nos diz não?

É noite. A luz está acesa. Os carros estão passando na rua. O barulho está chegando na sala. Um homem rebobina sua vida. E uma xícara de café fumega.

A história do café é simples – não a completa, que conta como os árabes o trouxeram para o ocidente e como o papa Inocêncio IV disse: “será uma bebida cristã” -, não... a história recente deste café é a nossa própria história quotidiana. Pegue água e o desejo. Coloque ao fogo, como prelúdio ao nervosismo. Espere ferver como se espera para tudo o que desejamos. Daqui pra frente temos três possibilidades, ou fazemos solúvel – mais prático, porém de gosto artificioso – ou fazemos coado, separando o sólido do líquido, ou fazemos a decantação. No caso do homem que não tomava seu café que fumega na xícara, o método escolhido foi o segundo... porque apreciar demandava coar o que nos incomoda. Pôs na garrafa, que depois colocou na xícara que está na sala perto do sofá onde está sentado pensando se era amor ou se era só fumaça...

O motivo literário, no entanto, nada tem a ver com a bebida que ele não estava tomando, apesar de tê-la preparado com tanto afinco. Não, tem a ver com um poema de Manuel Bandeira do livro A CINZA DAS HORAS: Chama e fumo, onde se acha escrito

Amor – chama e, depois, fumaça...

Medita no que vais fazer:

O fumo vem, a chama passa

Para ele a grande questão é saber que chamas poderiam surgir de algo que não se sabe se era amor ou não. Porque a incógnita não é o porquê da negativa, mas entender até que ponto podemos estar enganados do que somos ou do que sentimos. Ou do que realmente queremos. Como algo que preparamos para simplesmente não nos importarmos depois.

O homem rebobina sua vida e sem perceber todos os elementos dispostos no aposento acabam tendo sentido metafísico. O ventilador que gira sem sair do canto, a formiga voadora que procura a lâmpada inutilmente, a televisão que passa um programa inútil e o rádio desligado coberto de discos que não escuta há um bom tempo. Tudo isso visto como o vazio de algo que a gente não sabe dar o nome. Seria solidão, seria tédio, ou coração partido?

O que o homem diria de si mesmo se lesse esta narrativa retratando-o em um sofá ao lado de uma xícara de café que fumega enquanto ele rebobina sua vida para saber se é amor ou narcisismo enquanto a formiga voadora procura a lâmpada inutilmente?

Talvez ele se identificasse com algum texto de Bukowski e tentasse rir de sua imagem ridiculamente pós-moderna. Ou talvez achasse que isso era apenas o enredo de uma dessas canções cafonas inspiradas nos dramalhões das novelas mexicanas e, seguindo essa lógica, visse que não valia a pena pensar em tanta besteira. O melhor que tem a fazer seria fazer essa barba de três dias e tomar logo a droga do café que estava esfriando e mandar tudo ao raio que o parta.

Entretanto não é isso que está a acontecer. Os sentimentos são reais. E, mesmo quando ilusórios ou não, são reais para quem está dentro. Ele continua lá, e continuará por muito tempo...

A tempo da formiga se cansar...

do barulho da rua ser quase zero

do programa chato acabar

da luz continuar acesa...

a tempo de não ter mais cabeça para tanto pensar... como um café que fumega até perder seu calor e simplesmente esfriar e azedar.

Para no outro dia preocupar-se com o único efeito prático de sua reflexão metafísica... fazer outro café que agora o desperte do fumegar da noite anterior.