1031-O GOLPE DO ORÇAMENTO - cotidiano urbano

Ela vem chegando... chegando. A gente toma algumas providências, tentando afastá-la, põe uma cerca elétrica ou aquelas horríveis serpentinas de aço com lâminas cortantes sobre os muros e a grade da frente da casa, mas o bandido quando quer roubar é como fogo de morro acima, ninguém segura.

A violência urbana está atingindo níveis insuportáveis. A polícia não prende mais ninguém em flagrante, confiada nas câmaras de televisão espalhadas pela cidade. Pequenos furtos e assaltos sequer são registrados na polícia, tão corriqueiros e constantes: é melhor “deixar prá” lá ao ter uma bolsa com pouco dinheiro arrancada dos ombros ou uma correntinha dourada arrebentada do pescoço do que dar queixa na polícia, que, na verdade, não vai resolver nada.

A sofisticação dos golpes aumenta e muitas pessoas, de ambos os sexos, são alvos das mais trabalhadas artimanhas para a consecução do roubo quer em casa, quer em locais públicos.

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Estava trabalhando em meu jardim na manhã quente de outubro, agachado, arrancando pragas entre as flores, quando fui surpreendido pelas palavras de um homem, na calçada, do outro lado da grade.

— Bom dia, senhor! Vim fazer o orçamento que sua senhora me pediu.

Levantei-me um pouco assustado. Um homem negro (ou seria afrodescendente?) bem vestido, estatura mediana, rosto escanhoado, uma feição alegre, sorria prá mim exibindo dentes alvos e dentadura bem feita. Eu diria que o preto era simpático, sim. Camisa de manga comprida abotoada nos punhos e mochila bem ajustada ás costas. Além de simpático, era elegante o pretão.

— Orçamento? Orçamento do quê?

Sempre sorrindo, respondeu-me, do outro lado da grade:

— A reforma de um móvel. Reformo móveis, lavo e conserto estofados, essas coisas.

E enquanto falava, dirigiu-se ao portão (que mantenho trancado, claro), na expectativa de que eu o abrisse de imediato.

— Reforma de móvel...? O senhor deve estar enganado. Nós não temos...

— É aqui mesmo, tenho certeza.

— Que estranho. A Enny não me falou nada. Nós sempre combinamos.

— Pois é, a dona Eni mesmo que me pediu.

— Olha, não sei qual é o móvel que ela quer que o senhor conserte. Como ela não está em casa, está na ginástica...

— Pois então, vou fazer uma surpresa para ela. Quando ela chegar, o orçamento já está pronto e podemos combinar.

E assim dizendo, tocou no portão, tentando empurrá-lo. Vendo que estava trancado, insistiu.

— Vamos, ela vai ficar contente.

Nesse momento notei certa ansiedade, uma pressa em fazer o tal orçamento. Mas não maliciei.

— Olha, ela não vai demorar. Deve chegar a qualquer momento. Me dê seu telefone, que quando ela chegar ela telefona pro senhor e ai combina tudo. Seu número do celular ou seu cartão...

Quando falei em telefone ou cartão, o pretão mudou logo de atitude.

— Pode deixar, pode deixar.

E foi embora sem em um “até logo”. Aparvalhado, dei-me conta, naquele instante, que estava sendo vitima de um golpe. Se tivesse destrancado o portão e o deixado entrar, na certa um assalto seria perpetrado, tivesse Enny em casa ou não.

Quando Enny chegou, realmente alguns minutos depois, narrei-lhe o ocorrido.

— Não temos nada prá reformar, temos? Que orçamento, que nada! — Ela comentou.

— E você nem imagina a pressa que deu no negrão quando lhe pedi o número do celular e que você estaria aqui em alguns minutos.

— Era um golpe, sem dúvida. O golpe do orçamento. – Enny concluiu.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 17 de outubro de 2017.

Conto # 1031 da Série 1.OOO HISTÓRIAS PLUS.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 06/03/2018
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