Adeus Aniceto :

O sofrimento dele era real e quase tocável. Era deloroso até em nós, presenciar a agonia daquele elemento que, de tão avançado estado de padecimento não se mexia. Estava imóvel e encolhido naquele catre, na penumbra de um quartinho daquela velha tapera. Ele nem mesmo gemia, apenas pálido em cor de cera.

A mãe, falando aos coxichos, como beata em confessionário, narrava para sua comadre, madrinha do enfermo a razão/origem do seu estado de padecimento, enquanto num canto da cozinha, a irma mais velha passava um café adoçoado de rapadura e no coador um negro pó de café torrado e moído em casa numa máquina manuel que lembro até o marca e modelo; Mimoso N°2.

No terreiro, distante aos acontecimentos vividos por membros daquela família, brincavam, se enroscando e piruetando na poeira um cão e um gato pintado. Eram a dupla de estimação do morinbundo, Peri e o bichano Mimi. Ambos não tinham como saber que o amo deles partia aos poucos para o desconhecido e tão temido Além.

Na pinguela balouçante sobre o riacho que delimitava os confrontos daquela pequena e quase insignificante propriedade, um deficiente físico, idoso, lutava em suores, tentando manter com pouca habilidade o equilíbrio entre uso do corremão, de bambu e sua rústica bengala de pau mulato. Era o benzedor e curadeiro conhecido na região como *tio Inácio.

Resumi minha visita em alguns minutos e saí ligeiro, quase a correr, no objetivo de me distanciar daquele cenário onde vi e senti a presença inadiável da ceifadeira mortal, abstrata e real, de nós humanos. E foi aí, enquanto virava a terceira curva daquela estradinha de terra vermelha, cujo nome era *Volta Fria, que vi o filme de nossa infância, (do enfermo e minha) passar vários episódios em segundos diante de meus olhos, e no consciente do meu subconsciente eu via nós dois brincando com carrinhos de ripas e carretéis, apostando corridas equilibrando-nos em tamancos de latas e embiras, nadando nos córregos e açudes e cutucando colmeias de marimbondos, entre outras traquinagens. Esse rosário de lembranças me trasladou da alegria da meninice e saudade do passado, à melancolia e frustração, diante a realidade do momento.

Olhei para o céu e tentei rezar alguma coisa rápida e pequena. Senti um calafrio a percorrer minha carcaça jovem e uma grande secura na garganta. Jurei pra mim mesmo que no Domingo iria à missa e rezaria, desta feita, mil rezas das mais fortes, em dedicação ao amigo Aniceto e isso até confortou tiquinho minha assustada alma. O sol estava quente, (era Setembro de 1974) mas mesmo assim meu corpo sentiu frio. Olhei para o céu e me assustei com a intensidade de seu azul. Era um azul tão profundo que me pareceu o céu não estava lá. Azul só, nem mesmo uma manchinha de nuvem branca. Estremeci.

Dia seguinte me chamaram para dar uma força. Mesma casa, mesmo doente...

Coloquei o doente no banco de trás do fusca branco, uma tia sentou na frente e deu algumas coordenadas ao motorista e o carro se foi. Por alguns minutos um pesado silêncio se abateu entre nós, pois em casos de cenas como essa era normal fazer conjetura e presságios, mas a mãe do menino estava entre nós. Calamo-nos.

Sábado fui pescar com dois amigos numa fazenda bem longe. Era nosso costume pescar, acampar ou penetrar em festinhas de fim de semana, para dançar músicas lentas ou rock, falávamos *Bilisket. Nem sei o porque desse nome.

Domingo eu cheguei da pescaria por volta das 14 horas e nossa sala estava vazia, sem nem mesmo uma cadeira. Perguntei o que estava acontecendo e brinquei se teríamos um baile. A resposta do meu avõ me gelou..

_ Se você não sabia, o Aniceto faleceu, essa madrugada e seus pais pediram para ser velado aqui.

Fiquei alguns minutos calado, depois fui ao quintal e joguei fora os peixes.

( Pardon )

( Pardon )
Enviado por ( Pardon ) em 05/03/2018
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