Criança mais triste do que eu
A morte chama por mim, mas não há pressa, porque tarde ou cedo, é para lá que eu vou.
Certo dia, perguntou uma menina aos seus pais, para onde iria, se morresse no momento. Os pais lhe disseram: "para um lugar mais bonito". Então, ela adiantou: "e que tal morrer já?"
A mãe, assustada, quase chorou de preocupação. Ajoelhou-se ao pé da miúda e estendeu-lhe as mãos.
“Meu amor, sabes que ainda preciso de ti”, disse a mãe, ainda sem conseguir gerir e entender a real situação. “De onde teria ela tirado aquela ideia?”, questionava-se, porque foi inesperado demais e isso fê-la pensar o que poderá ter acontecido de tão grave para que aquela que é o seu bem mais precioso interrompesse o Dia de Acção de Graças com um pedido de morte.
Era uma data escolhida para agradecer a Deus pelas coisas belas que lhes tivessem acontecido durante o ano, mas também pelos fracassos, não só as grandes realizações. E diferente das zonas de origem em que se comemorava, faziam-no num domingo, 24 de Dezembro, aparentemente sem grande sol, clima fresco e boas expectativas para o desenrolar do dia.
“Eu sei, e peço-lhe que me desculpe, mãe, mas viver não é assim”, lamentou a criança, mas foi então a partir daquele momento que não esperou mais por perguntas e desabafou: “Como pode haver no mundo esse tal de amor de verdade, se me sinto esfaqueada e destruída por nada, tanto que nunca sei para onde vão as minhas metades? Eu sei que me amas e até demais, mas e a vida lá fora, com bombas de zombeteiros e ignorância, sem grandes razões?”
O dia ficara arruinado com aquela conversa. Na cozinha, os ingredientes deixados a princípio do preparo e todos esqueceram-se dos seus telemóveis.
“É muito fácil de achar que, como pequena, não penso em mais nada, além de dormir e acordar, ter a cama arrumada e o quarto limpo. Mas não! Tenho andado inquieta, apesar do teu carinho, mamã”, confessou.
A escola é outra coisa, o medo invade, o mundo bate, disse ela, não podendo afirmar-se alegre.
“Posso ter nascido já velha, pois não me aliciam essas coisas de menina”, revelou, com lágrimas a caírem pintadas de ódio e furor, dizendo que não pode ter “agora” o que precisa: solidão para pensar, porque senão é levada à consulta, algo que tem grande pavor.
“Há muita catástrofe de plantão, e sei que vocês estão a par disso. Então me diga, velha, como posso estar descansada se crianças são a mascote do feitiço? Não vos assusta saber que posso ser uma peste? Como foram capazes de dar-me à pretensa luz de um mundo como este? Que mal fiz eu a vocês? Por que não ficaram só os dois? Já sei que o limbo, à minha espera, estende os seus lençóis…”, lá ela dizia coisas cada vez mais estranhas, que já não se percebia como a agonia, que para os pais era só uma fase, transformara-se em revolta.
“Filha”, entretanto interveio o pai, sem muito saber o que expressar, “tu és fruto do amor entre mim e a tua mãe, um divino presente oportuno”.
“Pai, desculpe!”, retrucou a criança: “Mas isso não me faz menos triste. É que já estou mesmo cansada.”