A vida com ela

Já há um tempo não tenho mais sossego. Os dias tem sido sempre tão cheios de nada que eu me sinto quase afogado nesse vácuo. Desde que a conheci propriamente que a tenho ao meu lado o tempo todo. Passamos os dois muito tempo em casa, a olhar um para o outro. Tento não prestar tanta atenção nela, só para ver se assim ela resolve me dar um tempo para mim mesmo. Não adianta muito. Mesmo quando tento me distrair com alguma atividade que me apraze, sinto-a apoiada em mim, jogada por cima das minhas costas, com os braços envolvendo meu pescoço. Em alguns momentos me sinto sufocar por esses abraços. A noite vem e com ela a agitação. Não sei, talvez o Sol a iniba um pouco. O momento mais desconfortavelmente agitado do dia é quando nos deitamos para dormir. Ela grita tanto, tão alto, às vezes até acho que ela vai acordar os vizinhos com tanto barulho, mas logo me lembro que ninguém a escuta. Normalmente eu diria que essa preocupação a menos me tranquilizaria, mas não é o caso. Lembrar que eu sou o único que precisa lidar com ela todos os dias me deixa um tanto quanto aflito. É responsabilidade demais, é incômodo demais. Quem sabe ela não pudesse me dar uns minutos de paz e ir chatear outra pessoa. Aliás, não chatear ninguém, porque eu não desejo esse tipo de dor de cabeça nem ao meu pior inimigo. Por acaso eu não tenho inimigos, mas se tem alguém a quem tenho tomado certa aversão, é ela. Quando preciso resolver algum assunto sério, quando penso em dar um passo, ou mesmo quando penso em desbravar a cidade, olhar as flores e o céu, ela fica completamente histérica. Logo minhas tensões a respeito dos assuntos importantes se intensificam, meus receios de tropeçar ressurgem e minha vontade de me divertir desaparece completamente. Ela age como se só existisse ela no mundo. Aliás, como se existíssemos apenas nós dois. E de vez em quando ela bem que consegue fazer o mundo inteiro sumir da minha vida. Por mais que eu deteste sua presença, não consigo deixá-la em casa, acabo sempre cedendo e levando-a comigo a todo canto que vou. E vamos sempre batendo papo. Isso soa como algo bom, ter alguém para conversar deveria ser algo bom, mas não é o caso. O silêncio me apeteceria mais. Os assuntos são sempre os mesmos, desde que a conheci que ela só fala sobre a mesma coisa. E ainda por cima são assuntos desagradáveis. São coisas que eu não queria precisar ouvir. Coisas sobre as quais eu não queria precisar conversar. Aliás, conversar não é o termo certo, desconsideremos, aquilo mais parece um monólogo. Chega uma hora que a gente já não aguenta mais, chega uma hora que a gente estoura. Outro dia perdi a paciência, disse que iria embora e a deixaria aqui. Devo ter sido bastante convincente, ela ficou até acuada por um tempinho. Mas realmente não mais que um tempinho, provavelmente percebeu que tudo tinha sido da boca para fora. Eu não iria voltar e largá-la aqui, mas eu também não poderia levá-la junto comigo. Talvez minha única saída fosse mesmo ficar aqui com ela, aprender a conviver com os surtos, a carência, os gritos, enfim, todo o estresse proporcionado por ela. Talvez um dia eu já não a dê mais ouvidos, talvez ela reclame e eu retruque, talvez eu só faça ouvido de mercador. Talvez ela desista e vá embora, quando perceber que eu não me importo mais. Talvez... Mas talvez tudo que eu tenha sejam mesmo hipóteses. Eu não tenho força e nem ânimo para chutá-la para fora da minha vida nesse momento, mas eu tenho tentado todos os dias dar um pouquinho menos de bola para ela. Ontem mesmo, pela primeira vez em um bom tempo, eu consegui deixar a Solidão em casa e sair completamente sozinho.

Pedro Paz
Enviado por Pedro Paz em 26/02/2018
Código do texto: T6265190
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